QUERO MORAR DENTRO DE UM SHOPPING

Era uma tarde de domingo e eu ainda não havia almoçado. Nada pra fazer, tomei o café da manhã muito tarde, depois de ler o jornal, almoçar no horário convencional pra que?

Ninguém disponível para um jogo de sinuca improvisado ou para um jogo de canastra. Um daqueles domingos sem nada programado, sem nada pra fazer de muito importante, num janeiro chato de ano ainda não iniciado, com chuvas torrenciais, sem campeonato brasileiro e o ramo têxtil ainda sob os efeitos da síndrome amarela do meio Planeta chamado China.

Aliás todo domingo é meio chato quando se escolhe ficar dentro de casa. Pra fugir dessa rotina enjoada, saímos todos para assistir um filme no melhor Shopping de Goiânia, depois de visitar a praça de alimentação, claro, e então passei a observar meticulosamente tudo que meus olhos alcançavam e já não me lembrava mais daquele chuveiro estourado do quarto da minha filha que acabei me esquecendo de consertar, mesmo porque não havia como entrar nele com roupas, sapatos e tudo mais espalhado pelo chão.

Em lá estando (no shopping) comecei a analisar a origem deste mega empreendimento que deixa a todos nós fascinados, encantados. Evoluíram de pequenas galerias que nasciam em ruas de centro de capitais e vazavam o outro quarteirão com pequenas lojas de atividades bem diversificadas de comercio e serviço e não era permitido conflito, concorrência. Depois evoluíram para grandes cidades planejadas, cercadas de todo aparato de segurança, amplo estacionamento e os nomes das lojas são geralmente todos também em Inglês, e você tem a nítida impressão de estar passeando por uma daquelas ruas mais movimentadas de Nova York ou São Francisco. Há momentos que você não sabe se está no Brasil ou em Londres.

É incrível, mas parece que nada mudou no tempo, ou em milhares de anos, quando se entra num ambiente desses, de luxo, repleto de profissionais especializados em gentilezas, estacionamento seguro sem flanelinhas, sem qualquer pessoa para aborrecer querendo vender bugigangas. Na verdade você entra como se estivesse num castelo inexpugnável daqueles que citei, só que ao invés de crocodilos e pontes suspensas eles usam câmeras de segurança, gorilas bem armados e com rádios comunicadores. Eles se postam enfileirados de terno preto e gravata e se comunicando parecem muito com aqueles guardas de antigamente com espadas e armaduras, fazendo reverencias aos nobres fidalgos que caminham pelos corredores. Você pode ver uma exposição de tapetes persas, pode ver na vitrine o ego dos escritores e poetas exposto nas livrarias e pode ver também muitas inutilidades e provocações próprias do sistema capitalista, como os tais livrinhos de auto-ajuda. Se você for um idiota completo, pode até sair de lá com uma camiseta nova, com sua foto no peito e escrito assim: “Amo minha família”. Não sei por que dizer isto pra todo mundo, de peito aberto, feito um babaca e fica pior quando não é em forma de um adesivo no vidro trazeiro do carro e completando: “Jesus é fiel”

A majestade portanto, é o cliente que passeia solene ganhando reverencias e sorrisos. As pessoas andam alegres e descontraídas pelas praças de alimentação felizes, como se a vida ali naquele ambiente fosse proveniente de outro mundo ou aquele antigo jardim de Palmeiras, onde as moças desfilavam pra lá e pra cá e os rapazes ficavam ali de pé, olhando aquele “trottoir” familiar. Um mundo perfeito, sem preocupações. Como se nada errado existisse cá fora, ou lá “no alto” onde as navalhas mostram que ainda estão afiadas e desafiando presídios incandescentes. Mais ou menos como aquele que freqüenta uma igreja, entra, agradece a Deus por tudo que tem e o resto que se dane.

O ar condicionado é o espelho exato da frieza e da formalidade do ambiente. Camisetas de R$80 a R$480, sem constrangimento. Tudo muito mecânico e ninguém se cumprimenta, escorregando pelo piso de mármore, apesar de que os mais jovens trocam olhares românticos e andam em bandos formando tribos felizes e fazendo o footing (o famoso walking on the sidewalk) e até puderam voltar a freqüentar cinemas. O incrível nesse ambiente de festas é que o lema diz: Somos todos estranhos, mas isso não importa.

Os cinemas voltaram sim, os jardins muito bem cuidados lá fora, mostram a competência dos projetos de decoradores que exibem seu talento pelos interiores das lojas sem considerar os pontos de iluminação misturando tecnologia e inteligência para absorver os recursos naturais e claro, estarem acima de tudo corretos do ponto de vista ecológico.

NO lugar das carruagens de Ben Hur, os modernos veículos na nova era do novo milênio. Para substituir os títulos de Rei, rainha, princesas, condes, etc, os internacionais cartões de crédito com os limites e senhas. Uma aparência aristocrática substitui solenemente a apresentação da identidade. Se requerida, não se importe não será porque você não tem a cara de um fidalgo, mas será sempre pelo desprezível comportamento de um funcionário de uma dessas Ongs totalmente despreparados. Entenda-se por ONGs, obviamente todos aqueles estabelecimentos comerciais que estão ali, satisfazendo nossas necessidades e atitudes doentias, compulsivas de consumidor, e por conseguinte com alvará da administração municipal, autorizados a explorar o fantástico mundo do comércio (em outras palavras, você), ostentando griffes e luzes coloridas para atrair consumidores. Tudo que você precisa está rigorosamente ao seu alcance, desde que pague.

Não se impressione com os preços, tudo que você está desfrutando naquele ambiente custa caro, os corredores limpos e brilhando, refletindo sua imagem como um espelho de um hotel 5 estrelas.

Todo “footing” da cidade nobre, transferido sumariamente para dentro desses castelos modernos, onde a elite predominante passeia à vontade e declara demagògicamente a ausência total de preconceitos quando percebe do lado, um consumidor de feira hippie que lá está fascinado em conhecer o fantástico mundo da classe A e do espetacular mundo da moda, com modelos de roupas esfuziantes, jóias caras e raras.

Ele se denuncia quando procura um pastel de carne grande com 100 grs de queijo daqueles servidos em mercados centrais e fica frustrado porque não encontra nada além daqueles mini, fabricados pelo Mc Donald´s. E quando olha uma calça Jeans de R$450, sussurra pra esposa ou namorada que pode encontrar coisa melhor no Brás, Bom Retiro ou na Bernardo Sayão em Goiânia.

Quem pergunta por uma igreja, uma capela dentro de um Shopping? Quem se lembra de Jesus, quando degusta um “petit-gateau” e paga por ele num restaurante australiano R$18,95. Aliás o cardápio consta esses décimos de centavos, nem sei por quê? Será porque é chic?

A iluminação da “cidade” é fantástica, parece noite de natal. As câmeras de filmagem pescam todos os movimentos e qualquer atitude suspeita é sufocada rapidamente e de forma discreta com um extremo cuidado para não ferir suscetibilidades geralmente de plebeus que sofrem de auto-flagelo. Muito raramente a imprensa nem freqüenta esses ambientes com intenção de pescar alguma coisa errada, porque lá estão os principais anunciantes com gordas verbas de publicidade. Se algum pequeno ladrão se atreve a furar o cerco é retirado do ambiente, ninguém fica sabendo, a não ser quando tentam entrar com um avião pela porta principal, como ocorreu por aqui em Goiânia, há uns três anos.

Você não vê uma parede mal pintada, descascada, uma cadeira quebrada, esgoto exposto (como se pode ver em Belém) mesmo que seja nos subterrâneos dos estacionamentos e tampouco vê um pivete catarrento puxando a perna de sua calça, pedindo “tio me dá um dinheiro”.. Quando falta a energia elétrica, os geradores próprios são imediatamente acionados, sugerindo a existência de um mundo extra, perfeito, sem problemas, que você pode ver pelo requinte dos elevadores panorâmicos.

E por isso, eu quero morar dentro de um Shopping

Luiz Bento (Mostradanus)
Enviado por Luiz Bento (Mostradanus) em 27/02/2012
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