Queimar os livros!?

Eu nunca me esqueço daquele dia; dia de uma queima; era uma tarde de um dia qualquer do ano 2004. Mas não era a incineração de algo que merecesse ser incinerado; era a incineração de livros. Na verdade, para quem os incinerou, aquilo devia ser feito. O argumento de quem queimou os livros foi este: “Esses livros já estão ultrapassados; não servem mais”. Eu não tinha poder nem influência para impedir aquela ação. Antes, eu havia manuseado aqueles livros; gostei deles; se pudesse, teria ficado com eles. Para o meu limitado entendimento, aqueles livros não estavam ultrapassados. Ademais, o estado daqueles verdadeiros amigos era saudável. Mas eles foram lançados ao fogo. Eles gritavam naquelas chamas, pedindo misericórdia. Seus apelos, porém, não foram atendidos. Que crueldade! Quem não é do mundo dos livros dirá: “Os livros não gritam. Esse cara tá louco”.

Será que os livros ficam ultrapassados? Eu fiquei triste, mas não disse nada. Eu me comportei segundo um dos meus possíveis modos de me comportar: fiquei calado; só observando. Os livros foram queimados.

Certa vez, o filósofo Rousseau enviou um exemplar de seu livro “Discurso Sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens” ao filósofo Voltaire. Este respondeu: “Acabei de receber seu último livro contra a espécie humana, e agradeço. Ninguém foi tão refinado quanto o senhor na tentativa de reconverter-nos em brutos. A leitura de seu livro produz o desejo de voltar a ficar de quatro. Como, entretanto, faz uns sessenta anos que deixei de exercer tal prática, sinto que é impossível, para mim, voltar a ela”, conforme se encontra no livro “Voltaire: vida e pensamentos”, p. 29. Entretanto, quando as autoridades suíças queimaram o livro de Rousseau, Voltaire defendeu-o, lançando este princípio: “Não concordo com uma só palavra do que dizeis, mas defenderei até a morte o vosso direito de dizê-lo” (ib.). De outro modo, esse princípio de Voltaire fica assim: “Posso não concordar com nada do que você diz, mas defenderei até a morte o direito de você dizer o que pensa”.

Os livros não devem ser queimados. Eles são nossos amigos; estão sempre à nossa disposição. Eles não nos abandonam. Eles nos amam. Os livros se preocupam conosco. Infelizmente, a maioria dos homens não reconhece a importância do conhecimento. São seres capazes de pensar, mas muitos não exercem essa brilhante, difícil e necessária arte. Preferem queimar os arquivos dos pensamentos, das ideias, do saber, do conhecimento humano. Os livros podem nos tirar da fofoca, dos vícios, da violência, da barbaridade. Os livros nos convidam e nos ajudam a pensar para viver bem. Mas muitos indivíduos não querem pensar; não querem viver bem. Preferem queimar os livros, e não doá-los a quem gostaria de tê-los. Por quê? Porque quem não pensa não quer que os outros exerçam a arte de pensar. Como diz um livro, “pensar é transgredir”. Mas quem não pensa não vai entender em que sentido se encontra a palavra transgredir; imaginará o que não condiz com o teor dessa afirmação.

Não devemos acreditar em tudo o que um livro nos diz, pois ele foi escrito por um ser humano. Mas podemos e devemos acreditar em tudo que ele nos diz, se concordarmos com suas afirmações. A Filosofia não aceita nada sem compreender, sem analisar. Porém, mesmo não concordando com as ideias de um livro, todo livro será, no mínimo, o ponto de partida para o desenvolvimento das nossas ideias. Podemos usar um livro para discordar do que ele diz ou para afirmar que concordamos com ele. Isso é arte de pensar e valorização dos livros, do conhecimento; é busca da verdade.

Num país em que a atividade do intelecto, da inteligência, da razão ou do espírito é vista sob desconfiança; num país em que muitos homens e mulheres vivem mergulhados no que é superficial; num país em que vemos livros jogados no lixo ou abandonados; num país em que o avanço da compreensão é pouco buscado, o homem que ama o conhecimento, sendo irônico, nos dirá: vou queimar meus livros. Muitos acreditarão que os livros serão mesmo queimados por aquele que ama o conhecimento.

Qual é o poder e qual é a importância da boa ironia? Qual é a importância do conhecimento?

Domingos Ivan Barbosa
Enviado por Domingos Ivan Barbosa em 19/08/2015
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