Tentação

Ela tinha treze anos. E como se não bastasse o rosto sapecado de espinhas, ela tinha uns bons quilinhos a mais.

No recreio da escola ficava debaixo de uma árvore, estudando para a aula seguinte – ou já adiantando o dever de casa das aulas anteriores. CDF. Pedia um pão na chapa e uma coca diet para a ‘tia’ da cantina e ficava lá, só com os livros. Às vezes alguma colega da turma parava para falar com ela, conversava um pouquinho e logo ia jogar queimada ou brincar de elástico. Uma vez ou outra perguntava se ela queria jogar também, mas a resposta era sempre negativa. Ela sabia toda a rotina do elástico, mas se cansava fácil. Sentada debaixo da árvore, ela comia e estudava. Mastigava pouco e engolia rápido, a coca cola ajudando a descer; afinal, eram só vinte minutos de recreio. Quando acabava de comer, limpava os dedos e a boca e dobrava cuidadosamente o guardanapo, enrolando como se fosse uma mensagem que colocava na garrafa de coca. De vez em quando até escrevia alguma coisa, alguma frase que tinha chamado sua atenção nos livros que lia para a aula de literatura, o terceiro horário das quintas-feiras. Sempre assinava. Imaginava que alguém iria abrir a garrafa de coca e ver o bilhetinho. Será que algum dia conheceria uma pessoa que tinha lido um de seus bilhetes? O sinal tocava, hora de voltar para a sala. Passava pela cantina para se despedir da ‘tia’ e dava uma olhadinha na prateleira de cima. Depois. Jogava a garrafa na lata de lixo reciclável (mesmo sabendo que o guardanapo dentro da garrafa anulava a boa intenção), subia as escadas, virava à esquerda e entrava na sala 105. Há dois anos era a mesma sala, e ela se sentava sempre na segunda fila, do lado da janela. Uma vez uma professora tentou trocar os lugares informalmente marcados na sala, parece que o rendimento foi mais baixo.

Foi na saída que bateu a vontade de novo. Passou pela cantina, a ‘tia’ já estava arrumando tudo para os alunos do turno vespertino. A outra atendente também já tinha chegado. Sorriu para ela quando passou. Perguntou: o que vai ser hoje? Todo dia queria pedir o que sabia que não podia. E todo dia ele parecia mais saboroso, mais tentador. Parado ali na prateleira de cima. O sonho de creme.

Quase sempre havia uma fileira de sonhos com recheio de creme e outra fileira de sonhos com doce de leite. Todos polvilhados com açúcar de confeiteiro. Redondos, apetitosos, chamativos.

Ela fazia um não hesitante com a cabeça e continuava andando até a saída da escola. Carregava muito material, mas não queria mais usar a mochila com rodinhas que tinha usado até o ano retrasado; não era mais criança. Algumas vezes, a mãe dela vinha buscá-la porque tinha estacionado muito longe. Ela não gostava muito, mas tudo bem.

Hoje era um desses dias. Viu a mãe no portão da escola e começou a andar um pouco mais devagar. Chegou perto dela, deu um beijo rápido e aproveitou para perguntar à mãe se hoje ela poderia comprar um sonho. Para depois do almoço, lógico. Podia ser só metade, a outra ela daria para a irmã mais nova, que já estava também chegando, as séries anteriores ficavam em outro prédio da escola.

Você sabe que não pode, meu amor.

É, eu sei. Desde o ano passado, quando o mal-estar passou a ser crônico, e a fome e a sede excessivas. O que foi que o médico disse? Diabetes tipo 1. Você vai ter que controlar sua alimentação agora, mocinha, e tomar insulina para controlar essa taxa altíssima. Pegou todo mundo de surpresa, nunca houve nenhum caso na família. Os pais ainda estavam forçando uma disciplina quase marcial, talvez fosse um pouco de culpa. É para o seu bem, meu amor. É, ela sabia.

Tanta coisa para acontecer com tanta gente e logo ela tinha que passar por isso. Não era justo. E as festas? Bolo? Não, obrigada. Não, deixa o brigadeiro para depois. A coca é diet? Ah, só vou tomar água. Se bem que, um ano depois, as coisas não pareciam tão horríveis assim. Vou me acostumar.

Mas aquele sonho era um verdadeiro sonho.

Ela com sua doença invisível, que rouba os pequenos prazeres do açúcar. E assim seria para o resto da vida, como disse o médico. Ele, o sonho, a imagem da provocação.

A mãe apressou o passo e disse que depois do almoço ela poderia comer um chocolate diet. Ela só esperava que não fosse daqueles de soja, já estava meio enjoada deles. A tia da cantina fechou a porta, ia almoçar no restaurante em frente à escola. Ela ainda deu uma olhadinha para a prateleira de cima, onde o sonho continuava, perturbador e imperturbável. Ela deu um suspiro e seguiu em frente. Tinha muito dever de casa hoje.

Não pensaria mais nele. Pelo menos até amanhã.

Cláudia Clô
Enviado por Cláudia Clô em 21/07/2016
Código do texto: T5704540
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