Cuidar do próprio rabo

Quando eu tinha 12, 13 anos, meu pai me chamou, sentou na minha frente, deu uma pigarreada e falou duma talagada só:

- Linquinho( era assim que me chamava), eu não vou te ensinar a ficar rico na vida. – fêz uma pausa. – Se soubesse o jeito a gente não morava de aluguel aqui na Colônia do Paxola. Tinha carro, não passava tanta necessidade, você teria a bicicleta que tanto quer e a Julinha não ia lavar roupa pra fora pra ajudar nas despesas ( Júlia era o nome da minha mãe).

Seu Waldemar era um sujeito bem humorado( acho que herdei isso dele) e quando o vi assim, todo sério e didático, confesso que deu um frio na barriga. Tratei de me arrumar melhor na cadeira e prestar atenção.

- Mas uma coisa eu posso te ensinar pra viver melhor na vida!

Redobrei a atenção.

- Olhe sempre o lado bom das coisas. E tudo tem um lado bom! Lembra quando quebrou a perna?

Claro que lembrava! Tinha caído do umbuzeiro onde a gente brincava de pega-pega e ficado um tempão com a perna engessada. - Mas qual o lado bom daquilo? – perguntei.

- O Toninho não começou a te ensinar violão?

Era meu cunhado. Casado com minha irmã mais velha, fazia dupla sertaneja com um amigo e cantavam nos circos que apareciam na cidade. Sereno e Sereninho. Ele era o Sereninho.

-Se estivesse bom, ia ter paciência pra isso?

Não é que meu pai tinha razão? Muitas vezes ele pegava o violão e ficava dedilhando Disco voador, Marvada pinga, eu assistindo. Quase sempre olhava, estendia o violão pra mim e via se eu queria aprender. Só fiz isso porque com a perna quebrada não podia brincar lá fora com os outros moleques da colônia.

- O segundo ensinamento é mais importante!- acendeu um cigarro de palha, deu uma baforada e só aí explicou:

- O ano tem 300 e tantos dias pra você cuidar do seu rabo( ele usou um termo mais chulo) e isso dá um trabalhão danado! Então não perca tempo cuidando do dos outros!

Meu pai tinha disso. Vez em quando falava sério com jeito brincalhão. E era um sábio! Só terceiro ano de grupo mas minha mãe contava que tinha alfabetizado outros adultos na época que moraram em Cambaratiba. Eu não nascido ainda.

Fiz esse preâmbulo todo pelo que aconteceu comigo final do ano.

Sou escriturário numa escola estadual aqui em Ibitinga. Como sabem existe uma lei proibindo fumar dentro de repartições públicas. Por isso colocamos um banco do lado de fora da secretaria – que batizamos de fumóbanco – onde os professores fumantes e eu soltamos nossas fumacinhas.

Vai daí, em meados de novembro eu ali sentado, pensando na vida com um cigarro na mão, um pai de aluno entrou.

- Eu preciso da certidão de nascimento do Joelson pra levar na firma!

Existe uma regra nas repartições de documentos não sairem em hipótese nenhuma. Mas a gente quebra o galho ás vezes. De repente os pais perderam o original; de repente não encontram porque não procuraram direito; de repente mudaram de casa(era esse o caso )e na bagunça. . .

Ah! Esqueci de contar que o sujeito não ia com a minha cara. Nunca fiz nada prele. Aliás nunca tinha tido contato com ele a não ser na escola, mas vivia falando nos bares da vida que eu era um chato, um pedante, um seiláoque. Até brinquei algumas vezes quando algum conhecido comentava a respeito disso:

- Fosse uma loirona gostosa e tetuda que quisesse dar pra mim, eu até ia ficar chateado! Mas um barbudo? Xá pra lá! Não vou ficar nem mais rico nem mais bonito com a gostança ou não dele!

Entreguei a certidão e pedi, apenas pedi que, quando devolvesse fosse para mim mesmo. E expliquei que “ não podia sair documentos, a diretora ia repreender se soubesse , e patatipototó”. Ele fez que sim com a cabeça, concordando.

Isso foi numa terça, quarta-feira. Na segunda seguinte teve Conselho de Pais e Mestres e não é que o desgraçado foi até a diretora da escola e diplomaticamente agradeceu o favor que eu tinha feito? Que eu tinha sido gentil e prestativo cedendo o documento, etc, etc.?

Lógico que na manhã seguinte levei o maior crau dela! Quando soltei baixinho um palavrão endereçado ao pilantra , ela ainda defendeu:

- Puxa vida, Valentim! O pai foi muito gentil e falou bem de você. Com certeza não sabia que não podia levar o documento. O senhor não passa de um ingrato.

Meu! Fiquei uma arara! O cara me ferra e nem posso xingar? Só porque o boneco tinha feito a sacanagem bem feita elogiando minha prestatividade? Sem querer uma ova! Caso pensado pra me fuder de verde e amarelo!

Semana passada veio devolver a certidão.

E onde me encontra ao entrar portão adentro?

Sentado no fumóbanco depois de passar as notas dos alunos na Prodesp, um serviço chato pra cacete e num autêntico caco! Só esperando dar a hora de ir embora pra casa, tomar minha cervejinha, dar um beijo na patroa e descansar o cadáver.

Entregou o documento, nem um muito obrigado e saindo parou no primeiro degrau.

- Escuta!- falou.- Não tenho nada com a sua vida( outra coisa que meu pai me ensinou: quando alguém começa uma frase com “não tenho nada com isso”, com certeza tem), mas, você ganha pra trabalhar ou pra pitar?

Como perceberam era sutil como um hipopótamo bêbado numa casa de louças.

Minha vontade inicial foi mandar ele pra putaquipariu, mas estava de bom humor e só respondi ironizando que “na verdade eu ganho pra pitar, pra tomar café e comer bolachinhas recheadas que a escola fornece. A diretora de vez em quando compra wafer, que sabe que eu gosto”.

Ele deu uma mirada irada de alto a baixo em mim e sapecou:

- E ganha quanto? Uns milequinhentos por mês pra não fazer nada?

Foi aí que acertei no nervo exposto:

- Milequinhentos??? Ce tá louco? Fosse essa merreca já tinha dado o fora dessa merda!

- E quanto ganha então? – eu percebendo uma ponta de indignação.

Aí chutei alto:

- Tô com 4.750 na carteira mas vem 10 por cento de aumento no próximo mês!

O sujeito ficou tão puto da vida, mas tão puto, que quando saiu bateu o portão com tanta força que até a vice-diretora saiu para ver o que acontecia.

- Foi nada não – expliquei rindo por dentro – só o vento.

Não sei não, mas acho que ele não teve um senhor Waldemar como pai.

Ah! Mas não teve mesmo!

Ps:- Um diretor de escola ganha em média 2000 e pouco por mês. Eu, como escriturário, imaginem meu salário? E nós, funcionários do Estado nem carteira temos. É holerite.

Nickinho
Enviado por Nickinho em 17/01/2008
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