Solidariedade

Corria o dia 20 de dezembro do ano de 1984, uma manhã cheia de sol, daquelas em que a vida nos parece novamente possível na Terra.

Era assim, uma manhã de sol esplendidamente clara, de céu azul, onde brancas nuvens vagavam por vezes meio indiferentes, como se não fizessem questão de embaçar a luz dourada que tão suavemente abrasava, naquele instante, a cidade.

Pensamento longe, coração meio entristecido, eu seguia meu rumo incerto na vida, como quem espera, ainda, a verdade desta vida.

E estava, então, distraída, olhando um ponto qualquer da imensidão, quando aquela figura pequena, de pele morena e olhar estranhamente suave e consternador, chamou-me a atenção, trazendo-me de volta ao mundo que nos cerca.

Aquela figura quase insólita, de pele enrugada pelos anos de sofrimento e privação que se perdiam no tempo, estava ali, sentada como tantas outras vezes, ao longo da calçada, rosto calmo de expressão quase feliz, estendendo os braços numa súplica de quem quer muito mais que uma moeda, de quem quer um aperto de mão.

E ao largo passavam indiferentes e distantes imensidades de transeuntes, preocupados não se sabe com que; mergulhados em suas próprias vidas, contudo, conscientes da presença real daquele velhinho, cujos olhos brilhavam cada vez que alguém se vislumbrava na calçada.

Como se o tempo tivesse parado, como quem assiste ao desenrolar de uma cena ao longe, fiquei ali, deixando o café esfriar, enquanto contemplava com ternura aquele velhinho aparentemente tão doce e sofredor.

Inutilmente tentei afastar de minha mente o triste pensamento de uma humanidade perdida e sem esperança, pois dezenas de pessoas tropeçavam naquele ser especial e fingiam não vê-lo, fingiam não ouvir sua voz pedindo uma moeda, um pão; fingiam não ver seus braços abertos, clamando por atenção, ignorando seu olhar de irmão, de gente, de busca e, por incrível que pareça, de esperanças.

A indiferença dos homens diante daquele a cena “de amor” (sim, porque apesar de tudo aquele velhinho era a expressão mais pura do amor em seu rosto sereno) espelhava a que insensibilidade se reduzira a humanidade.

Profundamente triste em presenciar num gesto tão pequeno a comprovação da degeneração da minha a própria raça, senti imensa vontade de chorar, e uma lágrima triste, teimosa, embaçou por um instante a minha vista.

Foi então que, naquele instante, um grupo de garotos despreocupados, camisas na mão, shorts coloridos, em alegre tagarelar, aproximaram-se do ponto onde o velhinho, de olhar inesquecível, sentado falava sozinho à brisa da manhã. E ao passar por ele, interromperam por um instante o papo alegre e voltaram para estender uma nota de moeda corrente e também as suas mãos, num gesto único de amor e compreensão.

Aquele gesto inesperado de fraternidade daquelas quase crianças, ainda, fez-me ver que nem tudo está perdido na Terra, porque são eles, as crianças e jovens de hoje, o futuro, o amanhã, e se o hoje está repleto de homens que só pensam em si mesmos, amanhã será diferente, porque de todos os que por ali passaram somente aqueles cinco garotos pararam para ouvir a voz de um coração solitário e de uma alma faminta.

Um gesto da minha amiga Marina tentou trazer-me de volta à lanchonete onde lanchávamos, mas eu já havia retornado e tudo em mim havia mudado. Era uma outra manhã!

Arádia Raymon
Enviado por Arádia Raymon em 19/01/2008
Reeditado em 07/06/2008
Código do texto: T824544
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