MEUS VIZINHOS SÃO TODOS SURDOS

Senhor Síndico

Venho convivendo há cinco anos com uma família, onde uma senhora idosa fala gritando um cachorrês esquisito e enjoado com algo que julgo ser uma cadela chamada “Maila”. É um tal “aiaiai Maila, vovó não gosta”, ou “ah neném que lindinha”! E quando resolve berrar com o bicho, aí escuto até na sala, com todas as portas trancadas. A velha deve ser a matriarca da família, que, diga-se de passagem, aumentou o número de moradores. Até um ano atrás, quando eu dormia no quarto da frente, não notava tanto. Só quando passava por lá ou pela cozinha e área de serviço, mas parece que ficaram todos surdos de um ano pra cá. Todos. Sem exceção. Da velha magrela, passando pela cadela, os moradores, e até o telefone e celular. Ainda bem que a descarga não é surda! Infelizmente instalaram o telefone na cozinha, algumas vezes umas moças preferem gritar nele, penduradas na janela. O celular, então, toca mais perto de mim do que o meu próprio.

Minha filha, que antes de casar, usava este mesmo quarto dos fundos - onde é hoje o meu escritório -, para trabalhar em sua tese de doutorado freqüentemente perdia a concentração, e a esportiva também. Bom, Alice casou se mudou. Achando que estava fazendo um ótimo negócio, me mudei, de computador, mala e cuia, pra este supracitado quarto. Era mais aconchegante,e mais escurinho. Me dei mal.

Então, senhor síndico, escrevo aqui neste livro preto de “sugestões e reclamações” (por que será que todo livro de reclamações é preto?) para escancaradamente dizer que suponho ser este apartamento 802 uma imensa favela. A própria “Família Buscapé” ou quem sabe a “Família Trapo”. E digo mais: devem ter progredido bastante e agora cada espécime do apartamento ora mencionado já possui seu próprio microfone ou alto-falante. Algumas vezes penso que usam os dois ao mesmo tempo. A coisa, afirmo, é assim também durante as madrugadas, pois eu durmo e trabalho no escritório, o aposento dos fundos, varando noite adentro, tenho muitas vezes até medo de palavras e gritos perdidos me atravessarem a cabeça e confundirem meus textos e personagens, de forma que acabe escrevendo “que eu seje”... “mendingo”... e coisas do gênero. Outro dia acordei com um terrível pesadelo: meu soneto alexandrino estava sendo declamado pra Fernando Pessoa, no morro, aos pés do Cristo, para a cerimônia de entrega da medalha de ouro do PAN, pela conquista de uma das sete maravilhas do mundo, com erros escabrosos. Acordei suando e tremendo. Era a velha avó da Maila, gritando: “Maila, não que eu seje má...mas eles tudo é quem fizeram isto”.

Ontem, dia 11 de maio de 2007, às quatro horas da manhã, estava eu me concentrando numa inspiração. Meu trabalho. Não, meu trabalho não é a inspiração. É o poema que vem com a inspiração. Quando um dos homens da casa chegou meio alto e ficou gritando com o outro como se estivesse no microfone dele. Na verdade, lá pra eles, estavam conversando, mas com muitos palavrões. Eu não acho justo, senhor síndico, pois sempre procuro abaixar o som do rádio e do computador, para não incomodar as pessoas.

Então, senhor síndico, hoje tive uma iluminação e veio a certeza clara de que é mesmo o apartamento 802. A linda moça perto da janela devia estar conversando com uma pessoa também surda. Aliás, todas as pessoas que telefonam para esta residência devem ser surdas igualmente. Acho que se eu fosse lá, acabaria pegando essa doença.

Imagino que eles sejam os proprietários do “carro da pamonha”, do “pão quentinho” e, quem sabe até do “carro do camarão” né? Pois nunca mais vi esses carros na rua ... e os alto-falantes provavelmente estão sendo usados por eles.

SENHOR SÍNDICO, EU NÃO AGÜENTO MAIS !!

Vera Sarres 11/07/2007