Ouvir Milton Santos: a universidade

Em tempos em que a Universidade parece à deriva, sob as injunções do capital e de concepções de gestões subservientes, é tempo de ouvir Milton Santos. Sobretudo o que ele disse em discurso de aceitação do título de Doutor Honoris Causa na Universidade Federal do Rio de Janeiro, em 24 de setembro de 1999. Naquela ocasião, Milton Santos proferiu o seguinte discurso:

“Nos dias atuais, é praticamente comum, quase em toda parte, a perda progressiva, pelas Universidades, da meta do conhecimento genuíno, o que contribui para despojar a instituição universitária de sua principal razão de ser.

Será essa uma evolução inelutável e irreversível? Talvez valha a pena, para fixar as idéias, retraçar, ainda que brevemente, a história geral do trabalho intelectual. Primeiro houve o sábio individual, aquele cujo conhecimento era elaborado em comunhão integral com a Natureza total. Era uma busca localizada, talvez inconsciente, de universalidade. O sábio individual foi substituído pelas corporações de sábios, nas escolas e nos conventos: o saber se tornava um atributo específico de um grupo, treinado para exercê-lo. Chega-se, depois, com as Universidades, à figura do ‘scholar’, mistura de professor e pesquisador, pago pela sociedade como um todo para ‘produzir’ livremente o saber, isto é, codificar, do seu ponto de vista, o saber coletivo, inventar individualmente, novos saberes, ou simplesmente fabricar um conhecimento a ser transferido à comunidade como educação. Mais recentemente, essa figura do ‘scholar’ foi parcialmente substituída pela dos ‘funcionários da educação’, sem maior compromisso com a pertinência dos temas.

Os sábios, as corporações de sábios, assim como a produção de um saber desinteressado e verdadeiro acabam se tornando coisa rara, quando a ciência, como serviço às coisas, matou a filosofia como serviço ao homem. O sábio é substituído pelo erudito, o cientista pelo mero pesquisador, o intelectual pelo profissional, se a grande preocupação não é mais o encontro e o ensino da verdade, em todas as suas formas, mas uma atividade parcelizada, dominada por um objetivo imediato ou orientada para um aspecto redutor da realidade.

Em tais circunstâncias, a Universidade corre o risco de abandonar a busca do saber abrangente, substituído pela tarefa de criação e de transmissão de um saber prático. Este saber prático, elaborado fora da Universidade pelas grandes firmas e dentro da Universidade por sua inspiração direta ou indireta, é subordinado a objetivos externos à busca do conhecimento verdadeiro. Daí o papel hoje determinante, das Fundações corporativas internacionais, na produção e na circulação das idéias. Veja-se, também, nas ciências sociais, o papel das redes, financiadas por convênios internacionais, tanto mais exitosos, no geral, quanto menos relevantes são os seus objetivos. A função desse pseudoconhecimento -fabricado sob encomenda- é construir, sob o selo do cientificismo, um discurso universitário cujo pecado de origem elimina a possibilidade de o associar à noção de verdade científica.

De um modo mais ou menos geral, a Universidade aceita esse papel sem glória de produzir um conhecimento comprometido, acorrentado ao que hoje se chama ‘o prático’, ‘o objetivo’, ‘o pragmático’, vocábulos que ganharam um novo contexto para significar o que é capaz de dar maior lucro, seja como for. Por isso, a universidade é chamada a realizar uma produção comercial do saber, um conhecimento adredemente planejado como um valor de troca, destinado desde a sua concepção (que é inspirada, cada vez menos, nas Universidades e cada vez mais nas grandes firmas) a criação de um valor mercantil. O conhecimento assim produzido é uma mercadoria sujeito à lei do valor econômico.

É um mundo de cabeça para baixo que as Universidades estão ajudando a criar e difundir, onde o meio passa ele mesmo a ser um fim. Quando a Universidade se transforma em uma oficina do utilitarismo, ela é, ao mesmo tempo, esterilizada e esterilizante. Torna-se um corpo morto e um corpo morto não cria coisa alguma. O conhecimento produzido como meio de produção nasce para morrer quando se torna funcional. É o saber do fazer coisas, um processo finito. Ora, a busca do conhecimento é um processo infinito, o processo de criação que é, ele mesmo recriador. O seu centro de interesse é no homem e não nas coisas.

Quando a Universidade decide institucionalizar a primazia outorgada ao estritamente técnico sobre o mais amplamente filosófico, entroniza o instrumental e minimiza o teológico. Quando as ciências, quaisquer que sejam, são tratadas como se não devessem ter uma filosofia própria, integradora, os objetos são colocados acima do homem. A Universidade que cria e difunde esse tipo de saber entre aspas perde seu conteúdo e sua finalidade, e os professores e alunos vão fazendo coisas, mas não sabem mais exatamente o que estão fazendo. Por isso, ao mesmo tempo em que as disciplinas chamadas científicas afundam num imediatismo confrangedor ou numa futurologia cega, as ciências sociais e humanas são subalternizadas, reduzidas a um papel de justificação ou de codificação de uma interpretação unilateral da sociedade.

Essas tendências gerais, hoje comuns a quase todas as Universidades, em quase todos os países, são um resultado do fato de que o saber se transformou numa força produtiva direta. Como ao mesmo tempo a economia se internacionalizou. O saber-mercadoria tinha que acompanhar a tendência, razão pela qual as universidades, por iniciativa própria ou por contaminação, aceitam seguir essa mundialização unilateral. Adotando um modelo externo às realidades nacionais ao serviço da produção das coisas, elas se tornam medíocres, graças, também, ao desajustamento entre um saber cada vez mais transferido e as realidades profundas das nações e graças à contradição entre os meios, universalizados pelas necessidades produtivas de caráter internacional, e os fins próprios a cada coletividade nacional, minimizados estes por uma globalização perversa, comandada por uma economia mundial perversa e uma informação internacional igualmente perversa.

Sob esse ponto de vista, a situação dos países do Terceiro Mundo é dramática. Porque o saber já chega de fora incorporado nos objetos, na tecnologia, no ‘management’ e inclusive nos ‘scholars’ importados, ainda que haja exceções. Nessa situação, a produção de um saber nacional autêntico torna-se assim dispensável. É exatamente por isso que as ciências sociais deveriam voltar a ganhar dimensão, pelo fato de que são os esquemas sociais de uso das técnicas e dos objetos que alicerçam o discurso de justificação das novas dependências e desigualdades. O esforço dos países subdesenvolvidos como o nosso deveria, pois, se orientar principalmente na direção do estudo das suas próprias realidades sociais como um todo. Esse, desgraçadamente, é também um domínio onde a imitação passou a ser uma regra e a mania dos títulos (mestria, PhD, etc) substitui, nas universidades burocratizadas, o saber genuíno.

A universidade internacionalizada ‘a priori’ só serve a alguns, cada vez menos numerosos. Porque não sendo universal também não é propriamente Universidade.

Mas não seria justo concluir com uma nota pessimista. Com todos os seus defeitos atuais, tão parecidos em quase todo o mundo, as Universidades geram o veneno e o antídoto, mesmo se em doses diferentes. Lugar de um saber vigiado e viciado, elas são, também e ainda, o único lugar onde o contra-saber tem a possibilidade de nascer e às vezes prosperar. Isto pode ser o resultado de esforços de cientistas pioneiros, agrupados ou não. Mas para guardar e manter o pensamento independente e indispensável que a instituição universitária aceite desinstitucionalizar-se, caminho único para evitar que o excesso de regras e de mandos acabe por esterilizar as suas possibilidades de um trabalho realmente livre, voltado para o interesse geral.

A tarefa de incorporar a Universidade num projeto social e nacional impõe, primeiro, a criação e, depois, a difusão de um saber orientado para os interesses do maior número e para o homem universal. Não há contradição entre nacionalidades e universalidades, entre as busca do nacional popular e o encontro com o universal. Devemos estar sempre lembrados de que o internacional não é o universal. O trabalho universitário não é propriamente uma tarefa internacional, mas precipuamente nacional e universal, dependendo, desde a concepção à realização efetiva, da crença no homem como valor supremo e da existência de um projeto nacional livremente aceito e claramente expresso. É a tarefa que nos aguarda” (SANTOS, Milton. “A Universidade: da internacionalidade à universalidade”. Disponível em: <http://br.dir.groups.yahoo.com/group/eskuerra/message/4659>. Acesso em: 10.10.2011.