A Revolta da Natureza

A Revolta da Natureza

A humanidade sempre revelou a capacidade de naturalizar aquilo que lhe era cultural da mesma maneira que submeteu ao jugo da cultura a sua natureza. Por saber, a civilização só foi possível com o domínio da natureza justamente porque o real e as pulsões foram subordinadas às instituições e a moral dominante. Já com Homero, o esforço para se dominar aquilo que era exterior ao indivíduo nunca esteve dissociado da iniciativa desesperada de sua autoconservação. O eu possui primado nessa tensão: “a distinção ocorre no sujeito que tem o mundo exterior na própria consciência e, no entanto o conhece como outro”.(1)

O senhorio de Ulisses exige a transgressão para com suas divindades, pois o conflito deste protótipo de homem burguês, com Posseidon - a divindade que estava associada àquilo que o herói ansiava por dominar – revela que o personagem deve lutar por sua autoconservação rompendo com a antiga natureza projetada como divindade. Afinal de contas “os deuses não podem livrar os homens do medo, pois são as vozes petrificadas do medo que eles carregam como nome”(2). O monoteísmo possui em relação ao animismo, um domínio mais intrínseco da natureza do eu e do existente justamente porque o indivíduo representante de tal idiossincrasia pode projetar pela hipóstase em sua divindade todo o estereotipo que dá sentido a sua repressão. Novas ordens sociais exigem formas distintas de dominação, nesse sentido o espírito humano sempre se desenvolveu com formas mais eficazes e cruéis de controle das pulsões humanas. O inimigo da ideologia dominante sempre foi o fraco inocente transgressor da paranóia coletiva que pretendeu elaborar um universo dentro si atacando os tabus renegando-os.

A utopia é profundamente difamada porque “a dominação tornou-se tão poderosa que o indivíduo, em sua impotência, só pode exorcizar o seu destino submetendo-se cegamente” (3). Todo sonho e todo desejo reprimido carrega consigo a sentença sufocada de que nossa civilização foi malograda. Esboçar uma utopia representa o retorno a elementos esquecidos dentro do sujeito, isto é, a própria esperança tida como insignificante frente à onipotência aniquiladora do real. O que a utopia nega é a realidade reificada adormecida sobre a natureza reprimida do eu fracassado. O homem perdeu essa virtude com aquele último suspiro de quem adentra as portas do holocausto, acreditando que isto seja um ritual do mundo moderno, pós-moderno ou contemporâneo. Devemos enfrentar a possibilidade de que os homens desesperados fazem da dominação que lhes é desferida a sua própria causa.

O mesmo esclarecimento que pretendia subordinar o real à razão liquidou inúmeras vezes a consciência com golpes nefastos de um domínio destituído de sentido. O niilismo em dimensões políticas e culturais é o holocausto. A aniquilação só é possível em um mundo onde o algoz é o homem enfeitiçado separado de sua essência. O feitiço paranóico é a ideologia esquizofrênica que em frenesi cria elementos absurdos para legitimar a ruína da civilização. O prosélito cristão o fascista e o homem globalizado possuem uma fé fanática e pedante na redenção que os têm levado à ascensão de sua estupidez, todo esse espetáculo é o primitivo retorno ao sacrifício vivo:

“Na época de Homero, a humanidade oferecia-se, em espetáculo, aos deuses do Olimpo: agora, ela fez de si mesma o seu próprio espetáculo. Tornou-se suficientemente estranha a si mesma, a fim de conseguir viver a sua própria destruição, como um gozo estético de primeira ordem. Essa é a estetização da política, tal como a prática o fascismo. A resposta do comunismo é politizar a arte”. (4)

A pulsão mimética que deveria iniciar a reflexão do ser e do existente; vislumbrar o eu e o outro é usada a serviço da dominação, a pseudo-individuação tem sido o elogio da nossa nova espécie de barbárie porque o eu impotente é injustamente condenado a pagar a dívida do fracasso de sua sociedade, como se o miserável fosse o predestinado e o único responsável por sua fome, e “é só pr isso que a industria cultural pode maltratar com tanto sucesso a individualidade, porque nela sempre se reproduziu a fragilidade da sociedade”. (5)

Assim como Ulisses o indivíduo no capitalismo tardio possui em sua essência a aparência.

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A separação entre espírito e natureza foi um dos malogros violentos que a civilização infringiu ao indivíduo. As mesmas instituições que garantiram ao eu a sobrevivência defendiam como valores ascéticos a autonegação frente ao tabu, é como Oscar Wilde imaginava “a tragédia real do pobre é que a única coisa que ele é capaz de sustentar é a autonegação”. (6)

Na sociedade totalitária o indivíduo se reconcilia com o todo sob a égide maldita da farsa. O fascista só consagra o holocausto porque nele uma espécie tenebrosa de bem comum assume uma função ritualística do algoz para com s sua Comunidade Popular (Volksgameinschaften). O totalitarismo amedronta porque nele o profundo desenvolvimento técnico está associado às cruéis idiossincrasias mitológicas. A dimensão política de tal fenômeno só pode ser aquela sentenciada por Benjamin.

“A nação dos fascistas, com seu rosto de esfinge constitui-se num novo mistério da natureza, de caráter econômico, ao lado do antigo, que, longe de se iluminar com a luz da técnica, revela agora os seus traços fisionômicos mais ameaçadores. No paralelograma de forças constituído pela natureza e pela nação, a diagonal é a guerra”. (7)

O engajamento do indivíduo na dominação representa o limite do esclarecimento que se estagna na imobilização da esperança. A destruição é o testemunho petrificado de que os indivíduos desenvolveram dentro de si uma cancerígena impotência fanática que se apega às ideologias mais absurdas, confundindo a sobrevivência do eu com seu auto-aniquilamento. Sob a lápide da essência do ser reside o autômato incapaz de enxergar a fatalidade da dominação que ele consagra. Esse é o modelo da nova espécie de barbárie que o totalitarismo representa. O capitalismo tardio persiste em criar em seu seio a derradeira saída nefasta que a revolta da natureza anseia: a perfídia política, o holocausto.

Notas

(1) ADORNO/HORKHEIMER: Dialética do Esclarecimento.

(2) ADORNO/HORKHEIMER: Dialética do Esclarecimento.

(3) ADORNO/HORKHEIMER: Dialética do Esclarecimento.

(4) BENJAMIN, Walter: A obra de arte na época de suas técnicas de reprodutibilidade.

(5) ADORNO/HORKHEIMER: Dialética do Esclarecimento

(6) WILDE, Oscar: O Retrato de Dorian Gray.

(7) BENJAMIN, Walter: Teorias do fascismo alemão.

Vinicius Mecenas Hoffnung
Enviado por Vinicius Mecenas Hoffnung em 06/10/2006
Reeditado em 07/10/2006
Código do texto: T258018