A LUTA DE ALAGAMAR

Entrevista concedida à jornalista Lidiane Maria da Silva

· Como foi o seu contato com os agricultores de Alagamar?

Em março de 1977 eu fui admitido como auxiliar de escritório pelo Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Itabaiana. Esse sindicato instalara uma Delegacia Sindical no Sítio Rodeador e fazia reuniões periódicas nessa localidade, no Grupo Escolar. Veio daí o meu primeiro contato com os trabalhadores da região.

Depois, com o advento do conflito pela conquista da terra, o Sindicato aumentou significativamente a frequência de visita na área. Eu, que na ápoca tinha 17/18 anos já era engajado nas lutas sociais, porque fazia em Itabaiana um teatro político conscientizador, através do Grupo Experimental de Teatro de Itabaiana. Então aquela situação deixou-me eriçado e eu queria está sempre na área.

· Você chegou a me dizer certa vez que fazia relatórios para o sindicato, que relatórios eram esses? Do que exatamente eles tratavam?

A CONTAG - Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura, a FETAG - Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado da Paraíba e os STR - Sindicatos dos Trabalhadores Rurais de Itabaiana e o de Salgado de São Félix, juntaram-se à ala progressista da Igreja Católica e a outros setores de vanguarda da Paraíba, para apoiarem a Luta dos Agricultores de Alagamar. A ala progressista da Igreja dava o apoio moral e o movimento sindical dava o apoio jurídico e logístico.

Assim, como funcionário do Sindicato dos Trabalhadores Rurais Itabaiana, fui designado, juntamente com Severino Izidro, então delegado sindical, e José Antonio, funcionário do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Salgado de São Félix, para fazermos o inventário de toda a produção dos rurículas, inclusive a área de terra ocupada, animais, benfeitorias e etc.

O nosso QG foi, inicialmente, na casa de Cícero Tributino, onde ocupávamos o espaço que servia de dancing nas noites de folguedos.

Trabalhávamos cerca de 10 horas diárias, só intervalando para almoçar e dormir. Na época não havia computadores, de forma que tínhamos de dactilografar tudo.

Para nos ajudar eu convidara meu companheiro de teatro e de militância política Pedro Lourenço, que levara uma roupa só. Lá pelo terceiro dia, em pleno verão e sem água para tomar banho, Lourenço fedia a suor que ninguém agüentava. Aí Biu Izidro emprestou-lhe uma calça verde e uma camisa amarela. Começamos a chamá-lo de Bandeira do Brasil.

Lembro, ainda, que no primeiro dia encerramos o inventário mais cedo, às 17:00 horas e fomos tomar banho num córrego que ficava atrás da Casa de Farinha de Tributino. Ao chegarmos lá nos deparamos com um fio de água esverdeada... Não conseguimos banhar-nos. Foi preciso retornar à casa de Cícero para tomarmos cachaça queimada com cinzano para nos dar coragem.

Nos dois últimos dias da semana mudamos de lugar. Fomos para uma casa de farinha nas imediações de Maria de Melo, onde dormíamos, ouvindo os tiros dos capangas dos herdeiros.

Mudamos para facilitar o acesso dos trabalhadores.

No horário do almoço subíamos um monte. A comida era fornecida por um trabalhador que agora esqueço o nome. Mas lembro que, como na casa de Tributino, este senhor nos servia uma fava maravilhosa.

Esse relatório tinha prazo para entregar. Passamos toda a última noite do levantamento no Sindicato de Salgado, fazendo a catalogação e dando os arremates, porque cedinho Severino Izidro pegaria o ônibus para João Pessoa, onde entregá-lo-ia na FETAG. Estávamos tão tontos de cansaço que o ônibus passou e não vimos. Tivemos que correr, na madrugada, atrás dele, para Biu Izidro embarcar.

· Alguns autores apontam que, naquela época, muitos sindicatos acabavam apoiando os proprietários ou então pouco faziam a favor dos trabalhadores, durante conflitos agrários como aquele. Qual era a posição do sindicato local em relação ao caso de Alagamar?

Nos anos setenta os sindicatos eram atrelados ao Governo. Sabe aquela coisa de você só funcionar se recebesse uma “Carta Sindical” do governo ditatorial? A ditadura fazia tudo para que os sindicatos parecessem órgãos assistencialistas: era convênio médico para lá, convênio odontológico para cá...

Mesmo assim, numa época em que os sindicatos no Brasil lembravam um pouco o modelo fascista, dois sindicatos se destacavam pela luta: o sindicato dos metalúrgicos, especialmente em São Paulo, e os sindicatos de trabalhadores rurais. Vários líderes sindicais morreram na luta pela terra. Agora, como em toda classe, infelizmente há bons e maus elementos, há o joio e o trigo. Eu nunca integrei nenhuma diretoria sindical, toda a minha vivência foi inicialmente como voluntário e posteriormente como funcionário e por isso tenho liberdade de falar sobre a atuação desses órgãos em relação à luta de Alagamar.

O Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Itabaiana deu apoio total e irrestrito aos trabalhadores de Alagamar. Nunca lhes faltou, mesmo numa época em que a grande maioria não era sindicalizada. Eu digo isso, porque o STRI instalou uma Delegacia Sindical, no princípio da tensão, para motivar a sindicalização.

A Assessoria Jurídica do STRI foi toda focada na Luta de Alagamar. O advogado, no princípio, era o Dr. Arlindo de Andrade Silva, hoje do Ministério Público da Paraíba.

Um dos líderes mais influentes na Luta de Alagamar, o poeta Severino Izidro, acompanhou todo o processo, inicialmente como Delegado Sindical e depois como Diretor do STRI.

Os diretores sindicais eram incansáveis na defesa dos trabalhadores, no contato com as autoridades locais e estaduais. Na prisão das freiras em Alagamar, e levadas para Pilar, as autoridades sindicais foram tenazes na luta pela soltura, cuja mobilização, juntamente com a Igreja, fez com que o então Governador Burity determinasse a libertação das freiras.

Posteriormente, o STRI enriqueceu a sua assessoria jurídica com o advogado socialista Dr. Wanderlei Caixe, que detinha larga experiência, com esse tipo de trabalho, no CDDH/AEP – Centro de Defesa dos Direitos Humanos – Assessoria e Educação Popular.

Não conheço a fundo o papel do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Salgado de São Félix, mas posso afirmar que nas ações de parceria com o STRI, em prol da defesa dos trabalhadores de Alagamar, teve um comportamento exemplar.

· O que mais te chamou à atenção na “luta”?

Daquela luta, colhi muitas lições: a opção pela não violência. Os trabalhadores sofriam todo tipo de ameaças, mas não revidavam; a união. O comportamento dos trabalhadores era voltado para o bem comum. Havia um compartilhamento das ações, das tarefas, das responsabilidades, dos víveres.

A conscientização política foi outra coisa que me chamou a atenção. A pertinácia do dever era acentuada.

Para se ter uma idéia, no dia 04 de janeiro de 1980, o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Itabaiana necessitava avisar aos trabalhadores de Alagamar que o Bispo D. Pelé iria no dia seguinte visitar a área.

O acesso a Alagamar era controlado por policiais militares comandados pelo Tenente Dirson Clementino, de forma que o Sindicato orientou a mim e a Izidro que fôssemos para Alagamar por Caldeirão, quer dizer, entraríamos por trás da comunidade, sem causar suspeita aos policiais. Pegamos o taxi de Zé de Tota e fomos até o pé da serra. De lá puxamos a pé. Biu Izidro, acostumado, subia a serra tranquilamente, enquanto que eu, não obstante encontrar-me com 19 anos, cheguei cansado em Alagamar, no finalzinho da tarde. Reunimos imediatamente as lideranças e passamos o recado. Durante a noite, mensageiros percorreram toda a localidade, avisando sobre a visita de D. José Maria Pires e outros Bispos.

No dia 05/01/1980, saímos (eu dormira na casa de Severino Izidro) todos, cantando o hino de Alagamar, composto por Severino Izidro, numa convergência para as imediações de Maria de Melo, onde o gado dos proprietários estava devorando a lavoura comunitária.

Quando Dom José Maria Pires chegou, acompanhado de Dom Hélder Câmara, Dom Marcelo Carvalheira e outros, por volta das 08:00 horas, todas as famílias estavam ali representadas. Eu achei aquilo maravilhoso!

Dom Pelé reuniu os trabalhadores e disse: “Mostraremos que os trabalhadores unidos poderão retirar o gado de suas lavouras”. Em seguida, quebrou um galho de maniva, no que foi imitido pelos trabalhadores e pelos demais bispos. Começou a tanger, sem violência, o gado, para fora da roça. Toda essa ação era registrada por televisões e jornais da Paraíba e alguns outros do Brasil.

Eu que usava o teatro para politizar a sociedade, fiquei encantado com aquela forma concreta de conscientização e, leitor que era de Dom Hélder Câmara, embora agnóstico na época, quedei-me perto dele, observando aquele homem tão pequeno no tamanho, vestido de batina creme, e tão grande na personalidade.

O Tenente Dirson acompanhava tudo a certa distância, mas quando D. Hélder Câmara chegou nas imediações da casa de Expedito, cuja residência já fora vitimada anteriormente por uma bomba de gás lacrimogêneo, o tenente falou: “D. Hélder, eu lhe respeito muito, mas o senhor não passa daqui. Se o senhor passar, eu atiro” E ordenou ao subordinado que preparasse a máquina emissora da bomba. Eu, que estava ao lado de D. Hélder, parei abruptamente e fiquei estarrecido, observando o bispo, o tenente e o soldado preparando o disparo... Ato contínuo, o Bispo D. Hélder, olhou nos olhos do tenente e disse: “Filho, você é pequeno também! Eu vou passar!” E passou! Eu, embevecido com aquela cena, passei também é claro! E o tenente não atirou...

Depois da expulsão do gado, eu precisava voltar para Itabaiana e naturalmente não pretendia voltar a pé, embora não pudesse passar pelo cerco policial, considerando que não era diretor sindical. Para resolver esse impasse, peguei carona no fusquinha de Dom José Maria Pires. A estrada vicinal era cheia de porteiras e eu pedi a Dom Hélder que ficasse no banco traseiro para eu ir abrindo as porteiras. Quando chegamos na rodovia estadual, em Salgado, eu falei: “Dom Hélder, agora o senhor pode passar para a frente, pois acabaram-se as porteiras.” E ele, gentilmente: “Pode ficar na frente, com Dom José, filho, pois eu sou sertanejo também.” Em Itabaiana, deixei-os na residência do meu amigo, Pe. Antonio Kemps e dirigi-me ao sindicato.

· O que você diria que foi decisivo para que os agricultores conseguissem permanecer nas terras?

A união, a perseverança, a luta, a consciência política adquirida no contacto com o movimento sindical, com a ala progressista da Igreja Católica e a vanguarda da sociedade, mas acima de tudo a luta do povo, como diz o Hino: “A tua glória é a nossa união”, atitude que ultrapassou fronteiras.