O Quilombo dos Carrancas
 
 
 
            Numa região bastante montanhosa, de fauna e flora abundantes, havia o quilombo dos Carrancas à beira do rio São Francisco, composto por vários negros que fugiram da escravidão, provenientes de várias fazendas. Próximo desse quilombo, a uns seis quilômetros de distância, havia a tribo indígena Guararás nativos e donos das terras desta região. Em uma época bem remota aconteceu a lenda que vou narrar para vocês.
            Grandes guerreiros conseguiam manter o Quilombo dos Carrancas livre dos ataques inimigos (Capitães do Mato e índios) graças a sua astúcia e ao difícil acesso ao local onde ficavam quase confinados. Todo cercado por enormes pedreiras intransponíveis, e uma praia de águas turbulentas e traiçoeiras que sumiam por baixo das pedras gigantes. 
Para se chegar até o quilombo só navegando pelas águas do Rio São Francisco, ou por meio de uma passagem secreta entre as rochas que dava para o lado externo. Esta passagem foi descoberta por acaso, por um dos moradores mais antigo do quilombo. A mata em volta da fortaleza era dominada pelos índios e ocasionalmente por patrulhas em busca de negros fugidos.
Essa passagem era mantida em segredo e revelada somente a alguns membros mais importantes do quilombo. O processo para se revelar esse segredo a um novo membro era feito em um ritual perante as carrancas. Nesse evento eram testadas todas as habilidades e limites do guerreiro em suportar a dor, prerrogativa necessária a uma possível captura e tortura para revelar com se entrava na fortaleza defendida por eles.
Essa passagem secreta começava em uma pequena gruta no fundo do quilombo, na qual havia um minúsculo poço de águas bem escuras, que ficava tampado por uma enorme pedra, pesada e bem disfarçada. Para se ir adiante, era necessário mergulhar nesse poço e depois de uns cinco metros, mergulhando, saia-se em outra caverna que dava acesso ao rio e ao mundo exterior.
            A área do quilombo era rodeada de paredões de pedras altíssimas por todos os lados, com formação negativa dando origem a um grande teto o qual servia de abrigo. O outro lado da fortaleza dava para o rio em uma pequena praia, num ponto em que havia corredeiras bem fortes.
O rio São Francisco descia caudaloso, e parte de suas águas desparecia por debaixo das rochas, onde formava um redemoinho. Aquele lugar tornou-se conhecido e perigoso, pois tudo que se aproximava das rochas, naquela margem, simplesmente desaparecia sugado pelas águas.
Portanto, quem quisesse descer o rio em segurança teria que seguir pela margem oposta ao Quilombo, ou vir direto para a praia sem descuido, o que tornava o indivíduo vulnerável e exposto aos negros Carrancas. Aquela fortaleza era constantemente vigiada por seus guerreiros, noite e dia sem o menor vacilo. Como possuía somente uma entrada pela água, era difícil serem atacados de surpresa pelos inimigos.
            Os moradores do quilombo viviam da pesca e da caça que eram fartas naquela região. Esse excelente abrigo era motivo de vários conflitos em virtude do conforto e da proteção que tinham naquela pequena fortificação natural.
Para segurança e sobrevivência dos Carrancas, uma fogueira era mantida constantemente acesa para o preparo dos alimentos, suas danças e oferendas aos deuses. Grandes esculturas de madeiras denominadas Carrancas, eram colocadas de frente para rio, cujo objetivo era espantar os maus espíritos, inimigos e os caboclos d’águas. Esses caboclos tinham a reputação de engravidarem as moças virgens, e afundarem as embarcações ao longo do rio São Francisco.   
           Segundo as crenças dos quilombolas, quanto mais feias fossem as carrancas, mais espantavam o mal que se aproximasse do Quilombo ou de suas embarcações, Nas embarcações as carracas ficavam em destaque na proa. Já as fogueiras, eram usadas para se aquecerem do frio e era nelas que acendiam suas flechas para atacar qualquer embarcação que se arriscasse a chegar perto, sem a devida permissão.
Ao primeiro alarme disparado pelo vigia sobre perigo eminente, todos os guerreiros, como que por encanto, apareciam de todos os lados e se punham em formação para a batalha, prontos para atacar. Até então, não tinham sofrido derrotas nas batalhas, que se tornavam cada vez mais frequentes.
O lugar oferecia uma considerável proteção contra o ataque de animais e de intempéries, como chuva e frio.
            Como era de costume, ao anoitecer, pela passagem secreta saíram quatro dos melhores caçadores em busca de alimentos. Assim que mergulharam e sumiram nas águas, a boca do poço foi bloqueada com uma enorme pedra. A saída de maior número de guerreiros colocava em risco a passagem secreta e, consequentemente, o quilombo. Em duplas, sumiam na mata, rapidamente, como fantasmas negros e quase invisíveis.
            A dupla formada por Zaki e Taú, depois de se afastarem bem da passagem tiveram problemas. Foram emboscados por um grupo de índios, a luta seria demorada e só terminaria quando houvesse um vencedor. Porém, Zaki, mesmo ferido, conseguiu se livrar dos seus inimigos e fugiu. Já seu amigo Taú, não teve a mesma sorte, foi capturado e imobilizado pelo grupo inimigo.
            A outra dupla escutou os ruídos da luta e com muito cuidado, para não serem vistos, rumaram para a passagem. Era lei entre eles que, se alguém fosse pego, os outros voltariam, o mais rápido possível, para elaborarem um plano para o resgate. Era a única forma de preservarem a vida e o segredo da passagem. Zaki sabia que cometera um grande erro permitindo serem vistos e pior, Taú foi capturado vivo apesar de um pouco ferido. Zaki estava muito longe da passagem, tinha que voltar com muito cuidado.
            Taú depois de uma longa caminhada foi levado ao chefe indígena Roani da tribo dos Guararás, que se localizava a uma légua do quilombo dos Carrancas. Logo começaram interrogar e a torturar o prisioneiro, pois queriam saber como chegar até o quilombo por um caminho que não fosse o rio. Pelo rio, provavelmente, ele não teria saído. Taú sabia que se abrisse a boca, além de morrer, todos de seu povo também estariam em perigo. Roani contava com muitos índios bem armados, e só não tinha exterminado o quilombo, pois em barcos pela água ficavam muito vulneráveis. Em todas as tentativas que haviam feito não obtiveram sucesso. A descoberta da passagem que levava ao quilombo seria, com certeza, a vitória. 
            Não conseguindo arrancar nenhuma informação de Taú, mesmo debaixo de muito sofrimento, levaram-no para frente ao quilombo dos Carrancas do outro lado do rio. Amarraram-no em um tronco para que todo o quilombo visse o que iria acontecer se ele não entregasse o segredo dos Carrancas.
            Os três caçadores guerreiros voltaram para tribo e contaram para o chefe do Quilombo, Zaci, o que havia acontecido. Zaki, seu filho, podia ver nos olhos do pai o desespero. Cuidaram dos ferimentos de Zaki, enquanto as mulheres lidavam com a pouca caça e alimentos que a outra dupla havia trazido. Todos no quilombo estavam alarmados e impotentes diante daquela situação. A passagem secreta foi bloqueada para que ninguém tivesse acesso ao quilombo caso fosse descoberta, ou o Taú não resistisse às torturas e a revelasse. O bloqueio era feito por uma enorme pedra que era empurrada por alavancas e depois calçada do lado de dentro do quilombo. Todos os guerreiros estavam a postos observando os acontecimentos e esperando as ordens do chefe Zaci sobre o que fazer. Saírem dali por água para tentar libertar Taú era suicídio, e era o que os inimigos esperavam.
            Zaci chamou seu filho Zaki e se prepararam para partir, utilizando a passagem secreta sob as ordens de que ninguém mais deveria sair dali, acontecesse o que acontecesse. Apesar dos ferimentos, Zaki era um excelente guerreiro, e o chefe do quilombo, um homem de coragem, escolheu o próprio filho para que partissem em uma missão quase impossível. Num ato de ousadia, que provavelmente custaria as suas vidas, se pintaram com as cores da guerra, oraram aos pés das carrancas e imploraram sua proteção. Sabiam que se não voltassem antes do dia nascer, também seriam pegos e torturados até a morte, e Taú provavelmente já estaria morto devido às torturas. O chefe pediu ao curandeiro benzedor que pegasse veneno para os dois, pois se fossem apanhados sabiam que deveriam usar. Xoloni, o filho mais velho de Zaci, ficaria em seu lugar e tentaria negociar com os inimigos e ganhar o máximo de tempo possível até que o pai e irmão voltassem ou não.
            Os dois partiram e a passagem foi outra vez bloqueada e só seria aberta se houvesse o retorno dos dois. Já do outro lado, na floresta completamente escura, pai e filho sabiam o que tinham que fazer. Precisavam capturar alguém que servisse como moeda de troca, ou sacrificar o amigo Taú que estava nas mãos do inimigo, o que poderia custar à vida deles também. Rumaram para a tribo dos Guararás que ficava a uma légua dali, tomaram um caminho diferente do usual, atravessaram o rio a nado e subiram na margem oposta, o mais rápido que puderam. Na caminhada de ida Zaci falou a Zaki:
            _ Precisamos capturar um refém de menor tamanho possível!
            _ Sei disso meu pai, pois seria impossível transportar um adulto.
            _ Mesmo sendo contra nossos princípios, terá que ser uma criança, disse o chefe. Não gosto nada disso, mas precisamos salvar Taú.
            _ O plano é o seguinte: você, Zaci, captura a criança, e eu coloco fogo em uma das palhoças no ponto oposto de sua ação. Enquanto a tribo se preocupa em apagar o fogo, nós fugimos, e quando derem falta da criança, estaremos longe.
            Algum tempo depois, estavam de frente para a tribo dos Guararás que contava com vários guerreiros em sua vigilância. Como era um descampado aberto tinha vários pontos vulneráveis. Pai e filho posicionaram-se contra o vento para não serem percebidos pelos cães.
            _ Pai, eu vou à palhoça de onde aquela criança está entrando e saindo.
            _ Meu filho, eu vou do lado oposto onde tem a fogueira e atearei fogo na oca mais próxima. Se der tudo certo, vamos nos encontrar aqui, se algo sair errado, já sabe o que fazer.
            Arrastaram-se até conseguir chegar bem perto de seus alvos, e mesmo em pontos opostos um conseguia perceber o outro. A criança saiu da oca e andou uns cinco ou seis metros até um monte de lenha que estava empilhado, apanhou um graveto e correu, novamente, para a palhoça. Foi o tempo de Zaki escorregar como um felino e se esconder atrás do monte de lenha, daí a pouco veio a criança novamente. Foi um golpe certeiro e rápido, a criança já estava em suas mãos desmaiada ou morta, não dava para saber ao certo. O pai de Zaki já tinha se posicionado do outro lado da tribo dos Guararás. Quando percebeu o êxito do filho, colocou fogo em uma oca, que ficava do lado oposto do qual fariam a fuga. Os dois se afastaram rapidamente, antes do fogo se alastrar, e se reencontraram no local combinado. Ali perceberam que a criança estava viva, mas ainda desmaiada. Logo os índios dariam falta da criança, por isso precisavam voltar o mais rápido possível. Amordaçaram a criança que foi colocada nas costas de Zaci. Quando atravessavam o rio, a água fria reanimou a criança, ela se mexeu com dificuldade devido às amarrações e à mordaça. Zaki percebeu no rosto da menina o pavor estampado e a incredulidade do que estava acontecendo. Mas eram acostumados a uma vida dura, o coração já estava calejado, e seu amigo estava em frente a sua aldeia precisando de socorro.
            Na tribo, a mãe escutou barulhos e saiu para ver o que ocorria. Percebeu que havia fogo em sua aldeia e a sua criança não estava por perto. Correu para onde apagavam o fogo e o alarme do sumiço da criança foi dado. Dividiram-se na busca da criança que poderia estar em um lugar qualquer, e na tarefa de apagar o fogo, Ninguém poderia imaginar a ousadia do inimigo diante de uma situação dramática. Como era noite, não dava para ver as pegadas; os cães latiam desorientadamente e ninguém percebeu de imediato o que ocorrera.
            O chefe Zaci, realmente, era muito corajoso, não temia a morte e sabia que tinha que responder à altura, se quisesse manter o respeito do inimigo. No caminho de volta, não tiveram muitos atropelos, apenas o cansaço, e logo estavam solicitando o desbloqueio da passagem secreta através de sinais preestabelecidos. Já, do outro lado, tornaram a bloquear o acesso para o quilombo. Logo o sol começou a nascer e a criança foi libertada na beira do rio e começou a chorar em total desespero. Colocaram-na de forma que o outro lado a visse. Quando começou a gritar o nome da mãe, os índios perceberam o que havia acontecido. Alguém veio da tribo dos Guararás com mais informações sobre o rapto da indiazinha. Índios e negros começaram a preparar a negociação para a troca. Zaci havia conseguido, temporariamente, a salvação de seu guerreiro Taú, e uma pequena trégua. Ambos reféns foram colocados em barcos que navegavam para o meio do rio onde seria feito a troca. Não havia perigo de alguma parte aprontar uma surpresa para a outra, pois o meio do rio era vulnerável às flechas dos dois lados. Os dois chefes Roani e Zaci estavam nos barcos para garantir a segurança da troca dos reféns. Taú havia sido muito torturado, mas aguentou firme. E assim que souberam da captura da criança trataram de reanimá-lo, pois, se ele morresse a criança também morreria.
            Os chefes fizeram a troca dos reféns, e Zaci disse a Roani:
            _ Precisamos de paz entre nossos povos ou, do contrário, muitos morrerão. Estamos aqui fugidos da escravidão, não temos para onde ir.
            _ Essa região nos pertence há muitos anos e vocês são os invasores. Não os queremos aqui, trazem má sorte ao nosso povo e o homem branco virá atrás de vocês e nos trarão problemas também.
            _ Nós fomos capturados e vendidos como escravos e não nos restou outra opção a não ser fugir para esta região. Aqui vocês também são inimigos deles, além de difícil acesso para os nossos captores.
            _ Não estamos dispostos a dividir nossa terra com seu povo, têm dois dias para abandonarem nossa terra em segurança ou, do contrário, mataremos todos vocês ou qualquer um que vier a nossa terra.
            Os barcos voltaram para as devidas margens e Zaci sabia que pelo semblante do seu rival não teria paz; de agora em diante a tensão seria grande entre eles. Durante o dia ninguém do quilombo de Zaci poderia sair devido à vulnerabilidade do cerco, mas à noite, seriam obrigados por uma questão de sobrevivência. As opções não eram muito boas, de um lado a escravidão os aguardavam, do outro o eterno combate com os nativos daquelas terras.        
            Os carrancas tinham uma pequena vantagem sobre o inimigo, sempre foram obrigados a sair à noite para caçar, buscar alimentos e atender as demais necessidades de sua gente. Eram muito melhores à noite do que a tribo rival. Poucas vezes arriscavam sair durante o dia pelo rio com seus barcos, e ainda assim só depois de escalarem parte da encosta das pedras e avistarem toda a região.
Numa reunião com os guerreiros do quilombo, Zaci deu o recado de Roani para todos e, por unanimidade, resolveram que não entregariam sua fortaleza. Os índios teriam que conquista-la com guerra e matar até o último dos Carrancas; morrer ainda seria melhor do que a humilhação da escravidão.
            Aquela noite foi de festa e de muita comemoração pelo regresso de Taú e, como de costume, soltaram várias carrancas boiando rio a baixo pedindo a proteção dos deuses. As aldeias, arraiais e tribos ribeirinhas muitas das vezes recolhiam as carrancas do rio e as prendiam em seus barcos como troféus e amuletos da sorte. Corria à boca miúda que as carrancas protegiam os barcos e seus donos de toda má sorte, inclusive do caboclo d’água que vivia afundando barcos da região e deflorando as virgens.
            Como num piscar de olhos, quatro dias se passaram e os dois lados se prepararam para a guerra, cada qual com suas estratégias. O prazo para deixarem a região havia vencido e o iminente ataque aos Carrancas poderia acontecera qualquer momento.
            No quinto dia pela manhã, Roani estava na margem oposta ao quilombo e preparava um ataque com barcos.
            Como os negros do Quilombo das Carrancas não abandonaram sua fortaleza, foram sitiados e, por água, não tinham como sair, somente poderiam utilizar a passagem secreta. Alguns índios tentaram a travessia por água, mas quando chegavam ao meio do rio, recebiam uma saraivada de flechas e acabavam voltando. Poderiam tentar descer pelas encostas de pedra utilizando cordas, porém, seriam presas fáceis. Roani resolveu fazer um ataque de cima das rochas, em dois pontos de acesso mais fácil pelo lado exterior. Realmente surtiu efeito e houve baixa dos dois lados. Alguns índios foram alvejados e caíram de cima das rochas, se espatifando lá em baixo. Pelo lado de dentro, as rochas eram escaladas até certa altura e vários carrancas ocupavam pontos estratégicos como meio de defesa, de onde podiam ver boa parte da região e a formação do ataque. Durante quase um mês as coisas mudaram muito pouco, porém, os estoques de comida e as armas dos Carrancas foram diminuindo drasticamente.
            Zaci pensou em bater em retirada com todos do quilombo pela passagem secreta que até então havia sido utilizada por poucos membros do quilombo. Mas a região toda estava bem vigiada e não conseguiriam ir muito longe. Cada dia que conseguiam defender a fortaleza era comemorado e novas carrancas desciam o rio em pedido de socorro aos deuses.
            Traçaram a estratégia de uns poucos ficarem sobre o comando de Zaki para defender o local, enquanto o restante tentaria um ataque à tribo dos Guararás. As mulheres e crianças fugiriam para um lugar conhecido que ficava bem distante, e aguardariam até que houvesse segurança para o retorno. Se fossem apanhados na fuga, seria o fim do quilombo. Refizeram e estudaram todo o plano, usariam disfarces para dar a impressão de que a fortaleza estaria sendo guardada por muitos.
            Quando chegou a noite de executarem o plano, estavam todos muito tensos e preocupados, mas não havia outra solução. Aproveitando a escuridão da noite, quase todos saíram pela passagem secreta usando cordas para guiar quem nunca havia feito aquilo. A passagem foi então e bloqueada, ficando apenas alguns Carrancas em pontos estratégicos para defender o quilombo. Até certo ponto, os que saíram do quilombo andaram juntos, se afastando o mais rápido possível, distanciando-se rumo ao outro local onde idosos, mulheres e crianças ficariam escondidas. Depois se despediram e se dividiram: mulheres, crianças e velhos seguiram para o seu destino e os guerreiros que os acompanhavam voltaram rumo à tribo dos Guararás para um ataque.
            A tribo dos Guararás não deveria estar muito bem protegida, pois a maioria dos índios estava no cerco ao quilombo. A região tinha alguns índios como vigia, mas os carrancas sabiam de várias rotas para chegar à tribo dos Guararás e o melhor batedor ia à frente escolhendo o caminho. Atravessaram o rio e subiram para a tribo. Se tivessem sucesso, retornariam para defender o seu quilombo. Quando chegaram perto da Tribo dos Guararás, o chefe Zaci deu ordens para que fizessem um cerco e se aproximassem o máximo possível das ocas e dos índios que ali ficaram. Ateariam fogo e atacariam sem piedade a todos que ali estivessem: crianças, mulheres e velhos. Retornariam o mais rápido ao outro lado do rio e fugiriam de volta ao quilombo. Ao comando de Zaci, ascenderam suas tochas e atiraram sobre as ocas mais próximas e o ataque começou. A morte se espalhou pelos dois lados, a tribo estava um pouco protegida e a luta foi igual. Depois de alguns minutos, ao comando de Zaci, os que puderam partiram em retirada e mais alguns tombaram diante das flechas de ambos os lados. As baixas dos guerreiros de Zaci foram muitas, e a Tribo dos Guararás também ficou em péssimo estado. Havia muitas crianças, mulheres, velhos e guerreiros mortos ou se contorcendo de dor pelo chão. A missão de Zaci tinha dado certo, porém, ele fora atingido, e o sangue escapava do seu corpo, não conseguia acompanhar o grupo. Não tinha mais salvação para ele, aninhou-se atrás de uma árvore e ordenou que os outros retornassem imediatamente. Ele ficaria e, até a sua morte, lutaria com os que tentassem capturá-lo. Tomou o veneno que o mataria em algum tempo, se contorcendo de dor pelos ferimentos e aguardando a chegada de sua morte agora inevitável. Instantes mais tarde percebeu a chegada do inimigo, o primeiro tombou com uma flechada no peito. Os demais pararam e se esconderam em sua volta, a noite estava muito escura e, por alguns instantes, nada se moveu. Com a flecha armada em suas mãos esperava por sua próxima vitima; jogou uma pedra a certa distância de onde estava e ela foi seguida por várias flechas. Com muita dificuldade viu um vulto entre os arbustos: mais um corpo tombou num grito pavoroso.
            Os índios perceberam onde ele estava. Começou o cerco, escutava os movimentos longe da sua visão e sabia que a única coisa que podia fazer era atrasá-los ao máximo. Ficou imóvel e preparado para o pior, algo se moveu, sua flecha saiu na mesma direção, mas desta vez só ouviu o barulho da flecha cortando a vegetação. Várias flechas vieram em sua direção. Zaci foi atingido na perna e no pé da outra, mas não saiu o menor som de sua garganta e sua flecha fez mais uma vítima em seguida. O seu tronco e cabeça estavam protegidos pelas arvores, teriam que vir pegá-lo. Não sentia mais dor, a hemorragia e o veneno o colocaram em transe e as árvores o amparavam. Os índios perceberam que se atacassem mais alguns morreriam. Para evitar mais mortes, colocaram fogo em volta do local onde ele estava. Em questão de minutos o fogo o alcançara já sem vida e o transformara em um monte de cinzas. Não havia motivo para o grupo de índios continuar seguindo os Carrancas fugitivos, eles já estariam longe, e poderia ocorrer várias baixas. Regressaram à tribo para socorrer os feridos, e já encontraram Roani e alguns índios que faziam o cerco junto aos seus. Não podiam acreditar em um segundo ataque, afinal os carrancas estavam cercados. Mas mesmo assim eles conseguiram sair de lá. Por onde teriam passado? Era quase impossível furar o cerco montado, certamente algum índio foi morto ou não cumpriu direito sua guarda...
            Neste momento os sobreviventes atravessavam a passagem secreta sem seu chefe Zaci e vários outros que morreram no combate, e novamente a passagem secreta foi bloqueada. Agora, estavam em número reduzido, mas o suficiente para guardar o quilombo. Sem as crianças, mulheres e velhos para dividir a comida restante aguentariam mais um tempo. As coisas para a tribo dos Guararás também não estavam boas, Roani ficou irado ao ver muitas de suas crianças, mulheres e anciões mortos.
            Os Guararás preparam os rituais funerários e enterraram sua gente durante todo o dia, só no dia seguinte fariam uma represália ao acontecido.
            Do outro lado, Zaki não tinha o corpo do pai e os demais guerreiros mortos para os rituais fúnebres, e foi obrigado a assumir o lugar de chefe. O seu irmão mais velho Xoloni também não retornou do ataque. Aterrorizado com sua responsabilidade, preocupado com os que haviam saído do quilombo para se esconderem em outro local, ajoelhou e pediu ajuda dos deuses.
            Dançaram em volta das carrancas em pedido de um milagre, e em homenagem aos seus bravos guerreiros mortos. Aguardar os acontecimentos era a única alternativa que lhe sobraram, o resto da noite e o dia seguinte pareciam intermináveis, a ansiedade para sair dali e verificar como estavam os membros do quilombo que bateram em retirada era enorme.
            Roani jurou vingança e não descansaria enquanto não matasse todos os carrancas. Sob as ordens de Roani foram intensificadas as buscas por toda região, alguns índios encontraram algumas pegadas, o que acharam muito estranho. Desconfiados de que alguns Carrancas tinham deixado sua moradia, começaram a procurar por toda a região, até que, finalmente, encontraram o esconderijo. O chefe Roani ordenou que fizessem um cerco e capturassem todos, só que não contavam com a reação de velhos, crianças e mulheres. Os carrancas haviam montado uma estratégia de defesa e vários carrancas que ainda conseguiam manusear arco e flecha estavam escondidos, vigiando os demais, o que surpreendeu os índios em uma emboscada. Houve um conflito entre eles que resultou na morte de vários índios e de todos os carrancas que estavam naquele esconderijo.   
            No quilombo, Zaki estava muito desconfiado daquela calmaria, e decidiu que à noite sairia em busca de notícias da sua gente. Saiu pela passagem secreta sozinho e, com toda a precaução para não ser visto, depois de algumas horas de caminhada, avistou o local onde estava sua gente. Não tinha ninguém montando guarda e nada de fogueiras acesas, o seu coração gelou de terror pressentindo o que teria acontecido. Saiu em desespero para averiguar sua suspeita e o que encontrou o fez entrar em prantos, não havia nenhum sobrevivente. O desespero tomou conta de sua alma e ficou de joelhos com os olhos esbugalhados sem reação, teve vontade de esganar todos os seus inimigos. Ficou algum tempo perambulando entre os mortos sem saber o que fazer, não podia deixar os corpos jogados sem um funeral digno. Juntou um monte de lenha seca, empilhou os corpos um por um e se despediu em oração. Colocou sobre a pilha de corpos uma pequena carranca que havia dependurada em seu pescoço e ateou fogo. Teve que ir embora o mais rápido possível antes do dia nascer e a fumaça o denunciar. Sua chegada ao quilombo foi desoladora e todos os seus comandados puderam ver em seu rosto o que havia acontecido. Pintou-se em cores tristes e traços tortos, estampando o estado de seu espírito. Em volta das carrancas a na clareira da fogueira cantaram o seu canto de vingança e dor. Tomar uma decisão seguida pela emoção só resultaria em mais tragédia, eram em muito menor número do que os seus inimigos.
Zaki disse aos guerreiros sobreviventes que se alguém quisesse fugir, o momento era aquele, os que ficassem, provavelmente, lutariam até a morte. Nos dias que se seguiram não tiveram notícias de seus inimigos, mas sabiam que era uma questão de tempo para voltarem e lutarem até conseguirem matar todos os Carrancas.
            Começaram a sair em pequenos grupos, montaram várias armadilhas em volta do quilombo e dentro também, pois sabiam que a fortaleza seria tomada a qualquer custo. Continuaram a montar guarda esperando o ataque final, que em um triste dia pela manhã começou.
            Vários barcos cheios de sanguinários matadores começaram a travessia do rio, só restava a alternativa de lutar até a morte. Os barcos indígenas foram chegando em grande número, flechas voavam por toda parte, muitos caiam mortos ou feridos de seus barcos que desciam o rio sem destino e eram tragados pelo redemoinho e sumiam por debaixo das pedras. O combate corpo a corpo no quilombo começou e vários guerreiros dos dois lados lutaram até a morte. O número de inimigos dentro do quilombo foi aumentando e os Carrancas diminuindo até só restar os que estavam em pontos estratégicos nas encostas das pedreiras, onde era possível escalá-la internamente. Os índios começaram a escalar a pedreira em busca dos últimos carrancas. Quando formaram uma fila indiana pela encosta, algumas pedras foram jogadas em cima deles. Alguns conseguiram chegar e tomar os pontos estratégicos, até que só restou Zaki, ainda armado com flechas e resistindo as investidas. Estava em um ponto na pedreira sobre o rio, o acesso era muito difícil e ele resistia bravamente, todos que conseguiam chegar perto dele recebiam a morte como presente. Agora, sobrou apenas sua faca, já não tinha mais armas para lutar. Cansado e ferido, olhou para as carrancas e pediu para ser morto o mais rápido possível. Os índios queriam pegá-lo vivo, e quando o cercaram por todos os lados disse a si mesmo que não seria apanhado e se jogou do alto do penhasco dentro do rio.
            A corredeira começou a arrastá-lo para o redemoinho e ele sem forças começou a afundar e sumiu por baixo da pedreira, era o fim do último dos carrancas. Debateu-se e tentou várias vezes buscar uma saída, seus pulmões foram se enchendo de água e suas forças já minguadas acabando. Arrastado pelo rio, era jogado contra as pedras. Seu corpo foi arremessado à superfície, buscou uma última respiração e se viu em um bolsão de ar dentro de uma caverna pequena. Segurou-se como pôde para não ser arrastado pelo rio novamente; para sua sorte sua roupa se enroscou em paus e pedras.
            Tossindo ficou ali, sem forças para se mover e tentando levar ar aos pulmões, voltavam ar e água pela boca e pelo nariz. A consciência vinha e desaparecia rapidamente em vertigens. Num último esforço Zaki se jogou em cima das pedras e apagou. Quando retomou a consciência sentia muito frio e fraqueza devido ao sangue que havia perdido. Na tentativa de se levantar para ir a um lugar mais seguro, começou a vomitar água e, novamente, perdeu a consciência. A dor e o frio logo o trouxe de novo a vida. Agora, estava tudo escuro e não tinha noção de onde estava. Na ânsia da sobrevivência arrastou-se para longe da beira da água, e quando percebeu que não corria mais risco de cair no rio, se entregou ao cansaço e entorpeceu. Muitas horas depois, acordou em desespero tentando lembrar o que acontecera e sem ter noção de onde estava. Aos poucos foi voltando a sua memória e o que lhe havia ocorrido. Alguns ferimentos estavam inchados e latejando. A revolta e o desespero pela perda de sua gente o deixavam muito abatido e desanimado. O que ainda o consolava eram alguns raios de sol que penetravam através de minúsculas fendas da caverna deixando-a um pouco menos escura. Podia se ver o rio que brotava sob uma pedra e sumia em outra a poucos metros abaixo. Sobre sua cabeça, um teto de pedra sem saída, apenas pequenas frestas deixavam entrar oxigênio e raios de luz. O rio trazia muitas folhas, paus, enfim, tudo que sumia em um redemoinho vários metros acima. Sua vista correu todo o ambiente que não era muito grande em busca de uma saída, de uma fenda maior que pudesse lhe dar alguma esperança de escapar dali.
            Enquanto isso, os vitoriosos procuravam, por toda parte, uma saída do quilombo que não fosse por água. Em suas buscas perceberam a enorme pedra calçada por paus e pedras e coberta de carrancas. Depois de muito esforço conseguiram remover a pedra e se deparam com um pequeno poço de águas escuras. Não conseguiram entender que era ali a saída, acharam que era um lugar de cultuar os Deuses. Essa saída também não tinha mais importância e Roani e seus aliados tomaram posse do que restara do quilombo e alguns objetos foram jogados no rio bem como os mortos rivais. Todas as carrancas foram atiradas rio abaixo. Fizeram uma verdadeira limpeza no quilombo, tudo que não era útil ou fizesse referência aos antigos donos era jogado no rio.
            Zaki em sua catacumba percebeu que muitas coisas apareciam e desapareciam no pequeno espaço do rio que corria dentro da caverna, e começou a juntar as coisas que passavam dentro daquele minúsculo poço.
Paus, bambus, folhas de coqueiro, coco, animais, peixes e corpos, reconheceu um dos seus que boiou por instantes e foi levado pelas águas. Os ferimentos de Zaki estavam inchados, com alguns focos de inflamação e tinha um pouco de febre. Quando a temperatura subia muito, se banhava na água fria para melhorar. Na caverna havia também morcegos. Utilizando paus e pedras, Zaki conseguiu abater alguns. Era um dos poucos alimentos, e apesar da repulsão, conseguia comer o suficiente para se manter vivo. Pequenos cocos foram apanhados, partiu-os ao meio e comeu a castanha que não estava com um gosto muito bom. Os dias passavam lentamente e à noite dormia muito pouco, até então não vislumbrara uma forma de sair dali, lhe faltava coragem e forças para mergulhar nas águas pois não sabia a que distância estaria à saída. De repente, apareceu boiando na água uma mini carranca, ele a apanhou antes que sumisse novamente e se encheu de esperanças, só podia ser um sinal dos deuses. Ele a colocou sobre uma pedra e a referenciou. Suas feridas começaram a cicatrizar e a febre deu uma trégua. O tempo todo Zaki lutava contra os pensamentos e as lembranças ruins. Sentado observando a água, percebeu algo nadando em sua superfície, era uma lontra. Pegou um pau pontiagudo e antes que se aproximasse ela sumiu. Ele entrou na água e verificou que havia pequenos buracos nas rochas que cabiam sua mão e parte do braço. Num desses buracos encontrou um peixe que cravou o ferrão em sua mão e saiu de lá pendurado nela, a dor foi intensa. Teve dificuldades para retirá-lo da mão, mas pelo menos arrumou uma refeição decente, depois de vários dias. Pegou os ferrões do peixe e os prendeu na ponta de uma vara utilizando a fibra do coco. Agora antes de levar a mão aos buracos, enfiava a vara com o ferrão para examinar se havia peixes. Estava emagrecendo muito rápido, pois conseguia pouca comida, mantinha-se de pequenos peixes, folhas, morcegos, sementes e alguma coisa comestível que descia pelo rio. Podia ouvir os uivados dos bichos do lado de fora da micro caverna, só não dava para precisar a que distância estaria da saída da caverna pela água.
            Estava sentado e desanimado da vida, quando percebeu que a lontra apareceu de novo, ficou observando ela sumir e reaparecer na água. Pensou:
_ Será que ela está vindo de longe ou existe outro pontos com ar como aquele na pedreira rio abaixo? Arriscar um mergulho rio abaixo poderia ser seu fim. Tinha perdido a noção de quantos dias estava preso ali. Suas feridas cicatrizaram, ele não iria morrer de infecção nem de febre.
            Mais uma noite chegou e percebeu que caia uma tempestade lá fora. Choveu a noite toda, dava para escutar e ver os clarões dos relâmpagos pelas pequenas frestas por onde entravam e saíam os morcegos. Se a chuva continuasse e o nível do rio aumentasse com certeza inundaria a pequena loca de pedra e ele morreria afogado.
Acordou cedo, a chuva continuava forte, o volume do rio aumentara muito e corria muito rápido, se ficasse ali, seria questão de dias para a desnutrição matá-lo ou ter sua moradia totalmente cheia de água. Resolveu mergulhar e descer o rio. Quem sabe a corredeira o levaria rapidamente para longe ou para a morte. Não aguentaria ficar ali até que outra chuva caísse formando uma corredeira com aquela velocidade, os deuses estavam lhe mandando um aviso. Prendeu a carranca em seu corpo, respirou fundo várias vezes, oxigenando-se bastante. Quem sabe seria a última vez, ou com sorte aguentaria até sair de dentro da pedreira. Encheu os pulmões o mais que pode e se atirou na água. Começou a descer rapidamente corredeira abaixo, ajudando com os braços e pernas para ir o mais longe possível. Foi de encontro às pedras várias vezes, enquanto descia o rio em grande velocidade, mas só iria à tona quando não tivesse mais oxigênio, seria terrível tocar a cabeça em uma pedra e não encontrar oxigênio. De repente, a água se tornou mais calma e clara pelos raios de sol, e já sem fôlego subiu a superfície e se encontrou no meio do rio, a poucos metros do fim da pedreira descendo mais devagar, a pedreira havia ficado poucos metros atrás. Com o resto das energias que lhe sobrara foi se direcionando para a margem.
            O rio estava muito cheio e a corredeira facilitou seu trabalho, foi descendo a favor da correnteza até alcançar a margem do rio. Exausto e sem forças para se levantar ficou ali por um tempo, recuperando as energias e tomando sol depois de muitos dias de escuridão. Seus olhos mal conseguiam se abrir diante de tanta claridade, suas pupilas foram se contraindo devagar até conseguir enxergar melhor. Examinou o local a sua volta e percebeu que o conhecia, não estava muito longe de seu quilombo, apenas uma enorme pedreira rio acima. Precisava comer algo urgentemente. Levantou-se um pouco cambaleante e foi entrando mata afora, logo encontrou algumas folhas, raízes e frutos para comer e se fartou o quanto pode. Agora, precisava arrumar um lugar para passar o restinho da tarde e a noite e proteger-se de qualquer ameaça. Lembrou-se de um local perto dali em que já havia se refugiado numa certa ocasião. Ainda com um pouco de tonteira se dirigiu para esse esconderijo. Chegando lá, teve dificuldades para ter acesso, tratou de arrumar a morada o melhor que pode, cobriu o chão com folhas e capim, e bloqueou sua entrada com paus e pedras. Ficou parecendo uma jaula, a diferença era que os animais ficavam de fora. Com uma lasca de pedra começou a fazer ponta em uma vara comprida, para se defender e caçar no outro dia, mal terminou de apontar a lança e caiu no sono.            
            Depois de vários dias, dormiu sem fome e sem frio, no meio de um ninho de folhas que, além de tudo, camuflava-o bem. Certo dia quando pintou no céu o anúncio dos primeiros raios de sol, acordou assustado de um pesadelo de mortes e torturas. Levantou-se e saiu de sua toca em busca de alimento e armas para se proteger melhor, ali era seu habitat natural e não teria dificuldades para se arranjar. Os dias foram passando, enquanto ele recuperava sua forma e os primeiros desejos de vingança afloraram em sua mente. Era um remanescente de um povo e simplesmente ficar vivo não o satisfaria. A grande vantagem é que ninguém sabia da sua existência, algo que lhe permitiria assombrar seus inimigos com toda a sua maestria de guerreiro dos carrancas. Emboscaria, um por um, até o último dia de sua vida, ninguém teria paz naquela selva enquanto ele vivesse.
            Alguns dias se passaram até ele começar a se aproximar de seus inimigos e vigiá-los de longe, arquitetando o que faria. Seguia cada passo dos índios em busca de sua vingança, no momento certo atacaria e desapareceria. No encalço de três de seus inimigos que saíram para verificar uma armadilha que haviam montado na floresta. Era um grande buraco, que outrora estava coberto de folhas, mas agora encontrava-se aberta: haviam capturado uma enorme onça. Os três nativos vibraram com a captura do enorme animal e ficaram em volta do grande buraco para matar sua caça. Juntaram-se em um determinado ponto da profunda vala, Zaki saiu detrás de um arbusto como um relâmpago e empurrou os três dentro do buraco. Agora era só cuidar para que não saíssem, e ajudar o animal a matar os três. A luta foi desigual e o elemento surpresa deixou seus inimigos presa fácil para o grande felino que logo matou a todos. Voltou a se esconder e ficou aguardando alguém vir verificar o que havia acontecido. Passado um longo tempo, escutou barulho de alguém se aproximando. Eram apenas dois e tudo se repetiu como acontecera antes, foram parar no fundo do buraco e morreram na boca da onça. Apanhou um arco e uma flecha na borda do buraco, e acertou a onça em um golpe fatal. Verificou se estavam todos mortos, pegou a faca de um deles e apagou todos os seus rastos, desaparecendo na floresta. Agora, não podia mais ficar por ali, pois viriam mais índios para verificar o que ocorrera, e nem podia levar todas as armas e objetos dos mortos pois chamaria muito a atenção. Desta vez, foi muito discreto e não deixou rastros do que acontecera.  Incrédulos, os índios que chegaram após algumas horas não acreditaram no que estavam vendo, não havia explicação; fora um acidente. A represália de Zaki haveria de ser lenta e bem calculada para não ser pego em flagrante. Não precisava de pressa. Sua vida perdera todo o sentido, a vigília constante e o preparo da vingança era seu único alento.
            Alguns índios sempre pescavam pelo rio, em duplas, e seriam as próximas vítimas. Bem longe do quilombo que haviam tomado posse, o rio despencava em uma cachoeira. A boca da cachoeira era um local bom para pesca. Zaki ficou vigiando vários dias até que uma dupla desceu rio abaixo e ficaram próximos à cachoeira. Um deles se embrenhou na mata em busca de algo para comer e fazer suas necessidades. Zaki saiu de onde estava e foi emboscar o índio, se colocou no caminho que ele faria na volta e ficou esperando. Quando o futuro defunto passou de volta com as mãos cheias de frutas, recebeu uma panca na nuca que quebrou o seu pescoço na hora, o barulho da cachoeira não deixou o seu amigo escutar nada. Impaciente com a demora de seu companheiro e o estomago reclamando algo para comer, o outro índio foi em busca do amigo. Chamava-o pelo nome despreocupadamente e ia se infiltrando pela trilha afora, no entanto, quando passou por Zaki, também levou uma pancada fatal na nuca. Zaki não podia deixar pistas, se apropriou do que lhe interessava, carregou os dois corpos, colocou-os no barco e empurrou cachoeira abaixo. No outro dia foram encontrados mortos e o barco todo despedaçado. Ficou claro que haviam se descuidado e caíram na cachoeira, ou fora obra do temível caboclo d’água, o que para a tribo era o mais provável. Até aqui tudo corria bem se é possível dizer isso. Zaki estava em ótimo estado físico, só a ira e a tristeza pela perda dos seus o incomodavam. Precisava arrumar um jeito de poder atacar mais rápido, com maior eficácia e não deixar pistas de sua existência.
            Em uma de suas rondas, Zaki encontrou os restos de uma onça enorme, as patas, a cabeça e as tripas foram deixadas para traz. Era uma arma excelente, tinha grandes garras e presas afiadas. Nunca se aproximava muito da tribo, porém, quando uma criança, mulher ou índio saia sem proteção ele atacava, e, com as garras e mandíbulas do animal caracterizava um ataque de onça, e deixava pegadas como se a onça tivesse fugido em uma direção. Depois de fazer várias vítimas em redor da tribo, todos começaram a sair bem armados e protegidos.
            Roani promoveu várias caçadas à suposta onça, apesar de não entender como um animal tão arisco estava se aproximando tanto da tribo. Passados alguns dias, conseguiram capturar e matar uma onça das grandes. Com o tempo, as coisas se acalmaram e as pessoas começaram, novamente, a se descuidar, pois a suposta onça havia morrido. Outra vez, algumas vítimas foram atacadas e mortas, desta vez o contra-ataque veio rápido e foi feito uma devassa na região, Zaki teve que abandonar a sua estratégia para não ser descoberto. Como atacaria novamente, precisava de uma maneira mais eficaz e que fizesse várias vítimas de uma só vez. O jeito seria arrumar uma forma de envenenar os nativos e provocar várias mortes ao mesmo tempo. Para isso, teria que ter acesso ao quilombo, sua antiga morada, o que não seria fácil, pois, agora, estava sendo habitado por vários índios, inclusive o chefe. Zaki resolveu que deveria utilizar a passagem secreta para acessar a fortaleza que haviam lhe roubado, começou a estudar o dia a dia da fortaleza e os hábitos dos novos inquilinos. Em um local, era armazenada uma bebida em grandes potes de barros, que utilizavam em suas festas religiosas. A bebida era de um sabor muito forte e apenas os guerreiros a utilizavam. A fortaleza era bem guardada e ter acesso ao local em que ficava a bebida, muito difícil. Precisava arrumar um jeito de chamar a atenção de todos para ter acesso às bebidas. Preparou um veneno, em quantidade suficiente para matar todos que tomassem a bebida. Ficou matutando uma forma de tirar todos de dentro de suas moradas, o que seria complicado, teria que arquitetar um plano que funcionasse eficazmente. Antes, foi conferir se a passagem secreta estava bloqueada pela enorme pedra e calçada por dentro, mergulhou do lado de fora, apareceu do lado de dentro com o menor ruído possível e, para sua surpresa, a pedra havia sido retirada.
            _ Agora sim, posso arquitetar um plano para exterminar em massa. Se for apanhado bebo o veneno e será o meu fim. Não tenho medo da morte e levo uma vida sem muito sentido.
            Provocar um desmoronamento de pedras sobre a fortaleza seria um bom plano, subiu até o topo dos paredões de pedra pelo lado externo, escolheu um ponto oposto aos potes com as bebidas, começou a empilhar pedras, umas sobre as outras. A tarefa durou vários dias, pois só fazia isso durante à noite e tinha que carregar pedras em um lugar muito acidentado, sem fazer barulho algum e nem ser percebido pelos guardas. Se caísse lá de cima seria seu fim, mas finalmente concluiu sua árdua tarefa.
            O plano estava traçado, subiria nos paredões de pedra, provocaria o desmoronamento, desceria, acessaria a entrada secreta, e colocaria o veneno nas bebidas. O grande dia chegou! Provocou o desmoronamento de pedras que atingiu algumas moradias próximas ao rio. Foi um estrondo tremendo e todos correram para ver o que havia acontecido. Rapidamente, desceu dos paredões e entrou pela passagem secreta; os novos moradores estavam voltados para os acontecimentos na área oposta, onde caiu as pedras. Com uma rapidez impressionante chegou aos potes, colocou o veneno na bebida, e correu de volta para a passagem secreta. Antes de ir embora colocou a carranca que resgatara na borda do poço de sua clausura na beira do poço. Mergulhou e desapareceu do outro lado, no meio da mata. Quando chegou ao seu esconderijo estava trêmulo, coração disparado, cansado e eufórico com a expectativa do que aconteceria. Agora, era aguardar a próxima reunião dos guerreiros, que tomariam a tal bebida de acordo com suas crenças e datas.
            Roani, ao amanhecer, escalou vários de seus melhores índios para verificar o que tinha causado o desmoronamento, e os conduziu pessoalmente. Quando chegaram ao topo da pedreira perceberam que havia várias pegadas de onça em alguns pontos, um animal teria provocado o desmoronamento por acidente. Zaki havia preparado tudo, deixou as pegadas da onça e apagado todos os vestígios de sua estadia naquele lugar. O chefe Roani estava aterrorizado com os acontecimentos. Isso só podia ser praga dos Carrancas! Logo marcou uma cerimônia preparada pelo pajé para espantar os maus espíritos. Uma grande fogueira foi armada no centro da fortaleza usurpada e começaram os rituais em volta dela, a bebida foi servida como de costume. O sabor quase não mudara, os homens beberam e cantaram em volta da fogueira à noite toda, sem perceber nada. A madrugada foi longa e assombrosa, todos que havia tomado da bebida entraram em convulsões devido ao veneno, os que haviam bebido mais, logo morreram. Vários agonizavam por todo lado, as mulheres e crianças entraram em desespero sem saber o que estava acontecendo. Roani também não suportou e morreu. Ao amanhecer, muitos estavam mortos e uns poucos se apegavam aos últimos fios de vida. Iara, filha de Roani, encontrou a carranca deixada na beira do poço e atribuiu a ela todo o mal causado.
            Zaki, que observava tudo a uma distância segura, chegou a ter pena de tanta morte que havia causado e do sofrimento imposto aos sobreviventes. Poucos guerreiros escaparam da morte, e como nenhum deles havia tomado a bebida, não foi difícil deduzir o que havia acontecido. Quem teria feito isso? Será que realmente a bebida estava envenenada? Deram a bebida a um animal que devido a seu pequeno tamanho morreu rápido. Todo o resto da bebida foi descartada, só não conseguiam entender como aquilo havia ocorrido. A bebida devia ter sido contaminada por acaso, pois alguns dias antes haviam bebido dela e nada ocorrera. Os mortos foram enterrados e cultuados por vários dias. Zaki se manteve a uma distância segura e não atacou mais, ele próprio não havia ficado tão feliz quanto imaginara.
            Teçá e Iara foram os únicos filhos de Roani que sobreviveram, e seus súditos eram basicamente mulheres e crianças, que pouco podiam fazer para ajudá-lo. Teçá desconfiava que algo errado estivesse acontecendo, mas todas as suas tentativas de descobrir a verdade não deram em nada. Resolveu voltar para antiga tribo, pois aquele lugar estava amaldiçoado pelas almas dos Carrancas. Aos poucos, as coisas começaram a se normalizar, as rotinas foram retomadas. Tudo na Tribo dos Guararás passou a ser vigiado e testado antes do consumo. Mulheres tiveram que caçar e realizar vários outros afazeres atribuídos aos homens, e, aos poucos, tornaram-se guerreiras também. Teçá resolveu proibir a ida à fortaleza dos Carrancas, pois acreditava que ela trazia má sorte e mortes.
            Zaki, depois de alguns dias, resolveu voltar em seu quilombo e ficou surpreso quando não encontrou mais ninguém, não teve coragem de se aproximar, pois podia ser uma emboscada. Dirigiu-se a Tribo dos Guararás e encontrou todos morando nela. A sua vingança já estava concretizada e não queria mais mortes. Retornou-se à fortaleza e, ao sair do poço, reencontrou-se com sua carranca, da qual tomou posse novamente já que era sua por direito. Defender o quilombo sozinho era quase impossível e desnecessário, o melhor era ficar no anonimato por enquanto. Construiu várias Carrancas e colocou em pontos estratégicos, para espantar os maus espíritos e assombrar quem resolvesse adentrar a fortaleza.
            Tudo transcorria sem surpresas, só a solidão afetava Zaki. Na Tribo dos Guararás tudo foi se ajeitando sem grandes acontecimentos. Teçá percebeu que depois que havia saído do quilombo das Carrancas, nada de ruim voltou a acontecer, por isso determinou que ninguém mais voltasse naquela fortaleza, pois seria amaldiçoado e morto pelos espíritos dos carrancas.
            As mulheres da Tribo dos Guararás se revezavam na caça e pesca. A irmã de Teçá, Iara, era destemida como o pai e não gostava de se submeter às ordens do irmão. Não aceitara a morte do pai e muito menos que seu irmão mandasse em de tudo por ali (novo chefe indígena), tudo pertenceria a ela, se não fosse uma mulher, pois era mais velha do que Teçá. Os dois viviam se contrapondo nas ideias de como governar a tribo, e muitas vezes se recusava cumprir as ordens do chefe Teçá.
            Certo dia Iara pescava em frente à fortaleza de pedra quando percebeu algo que lhe chamou a atenção, uma carranca próxima às pedreiras: era uma oportunidade de desobedecer Teçá. Contrariando as ordens do irmão, desceu à praia do quilombo dos Carrancas. Verificou que ninguém a seguia e começou a rondar pela fortaleza há muito abandonada. Zaki estava por lá despreocupado em seus pensamentos e quase perdeu o fôlego quando a viu. Será que o teria seguido ou o visto?! Na dúvida, precisava se desfazer daquela índia intrometida, matá-la-ia e jogaria o corpo dela e o barco cachoeira abaixo. Como um felino, foi se aproximando de sua vítima que andava despreocupada examinando cada detalhe pelo caminho. A índia cometeu o grande erro de achar que aquele lugar estaria completamente abandonado e despercebidamente, foi se aproximando do local onde Zaki estava escondido. Ele podia atirar a flecha dali mesmo e matá-la, e por causa da cachoeira assassina pareceria um acidente. Iara se aproximava cada vez mais, Zaki já podia sentir até seu cheiro. Algo o impedia de matá-la, não queria mais vingança. Pediu aos deuses que ela fosse embora e assim evitaria mais uma morte, mas Iara continuava verificando tudo com grande curiosidade. Ela chegou tão perto que ele não podia mais ficar inerte esperando que a índia se retirasse, então, ele, num ato impensado, levantou-se e apareceu em sua frente com uma faca empunhada em uma da mãos.
            Iara ficou tão aterrorizada que não conseguia se mover, com certeza era alma de algum guerreiro que viera se vingar dela. Seu coração disparou e o medo enorme a fez perder os sentidos e desmaiar momentaneamente. Antes de cair ao chão Zaki a segurou nos braços.
            Teria que agir rápido, colocá-la no barco e se livrar dela. A beleza de Iara era estonteante e lhe faltava coragem para fazer algo de mal à moça. Zaki molhou o rosto dela com água fria, o que a despertou lentamente. Iara percebeu que aquele fantasma era muito real, e por um tempo ficaram olhando um para o outro, sem dizerem nada com ares desconfiados. Zaki era um guerreiro muito forte e alto, percebeu Iara em suas formas e robustez de seu corpo.
            A atração entre os dois foi tão irresistível que nenhum dos dois conseguia falar nada, simplesmente ficaram hipnotizados, um pelo olhar do outro. Iara quebrou o silêncio perguntando:
            _ Como veio parar aqui, guerreiro? De onde você é?
            _ Eu vim fugido de uma fazenda muito longe daqui, não tenho mais nenhum parente vivo, estou só neste mundo.
            _ Como é seu nome?
            _ Zaki! E o seu?
            _ Iara! Sou da tribo dos Guararás! Estava pescando aqui, em frente, e tive curiosidade de visitar o local onde meu pai morreu, envenenado junto com muitos guerreiros. Eu sou mulher e não pude suceder o meu pai, meu irmão mais novo foi quem herdou o trono.
       Iara narrou toda a sua história para Zaki, desde as guerras, as mortes misteriosas, tudo que havia acontecido com seu povo.
            _ Qual sua história? Perguntou-lhe Iara.
            _ Eu não gosto de falar do meu passado, pois fui aprisionado em minha terra que é muito longe daqui e vendido como escravo. Minha história é só de escravidão, morte e sofrimento, até que resolvi fugir e me esconder por aqui.
            Depois de várias horas conversando Iara lhe disse:
            _ Eu preciso voltar para minha tribo!
            _ Não posso deixar você ir embora, sua tribo vai voltar e me matar, sei que não gostam de estranhos em suas terras.
            _ Se eu não for embora logo virão a minha procura e, fatalmente, lhe encontrarão, prometo-lhe que não vou contar nada a ninguém. E meu irmão não pode nem sonhar que eu desobedeci suas ordens entrando aqui!
            _ Que garantias eu vou ter de que esta dizendo a verdade?!
            Iara olhou em seus olhos e percebeu o martírio e o sofrimento estampado em seu rosto. Aproximou-se dele, frente a frente, e lhe deu um beijo em seus lábios. Zaki retribuiu, beijaram-se demoradamente.
            _ Essa é a garantia de que não vou delatar você, Zaki, chega de mortes e desavenças. Voltarei para revê-lo amanhã!
            _ Esperarei por você, Iara, que os deuses lhe acompanhe e abençoe!
            De longe, alguém gritou o nome de Iara. Estavam a sua procura. Zaki se escondeu e Iara correu para seu barco na praia. Logo, apareceu outro barco com sua amiga dentro, que parou do lado do seu.
            _ Iara, você desobedeceu às ordens de Teçá?
            _ Eu me senti mal e sem forças para continuar remando e tive que parar na praia um pouco para descansar. Agora, já me sinto melhor!
            _ Este lugar é mal-assombrado e você pode despertar a ira dos carrancas, outra vez.
            _ Promete que não vai dizer nada a Teçá?
            _ É claro que não, desde que não volte aqui nunca mais.
            Navegaram rumo a tribo, o assunto foi esquecido rapidamente e foram preparar o jantar antes que a noite caísse.
            Zaki não quis ficar no quilombo. Voltou para o seu esconderijo no meio da mata, seria mais seguro, pois Iara poderia ser obrigada a contar o que havia acontecido. Mesmo que tivesse se afeiçoado por ela não poderia confiar em alguém que vira pela primeira vez.
No outro dia, ficou esperando que Iara começasse a navegar pelo rio, para fazer a visita que havia prometido, o que não aconteceu. Será que Iara tinha sido punida pelo chefe, por ter desrespeitado as suas ordens?! Então, tomou a direção da tribo de Iara para verificar o que havia acontecido. Para sua alegria e surpresa Iara estava bem e parecia não ter revelado o seu segredo. No fundo, o que lhe incomodava era outra coisa, simplesmente o fato dela não ter aparecido. A solidão o estava consumindo. Depois de muito tempo sozinho pode conversar com alguém, no íntimo queria a oportunidade de ficar ao lado de Iara e escutar sua doce voz.
            Todos os dias, ficava vendo Iara de longe e nada dela sair para pescar. Certa vez, quando veio ver Iara, não a encontrou. Será que tinha ido a sua procura?! Saiu em disparada para a fortaleza, pegou o caminho pela passagem secreta e, quando chegou lá, viu-a sentada na praia, desolada. Havia chegado bem cedo, enquanto todos em sua tribo dormiam, procurou Zaki por todos os lados e nem sinal. Ele pode ter ficado com medo de ser denunciado ou, como não voltei no dia seguinte, desapareceu.
Zaki se aproximou pelas costas de Iara, sem ser percebido e lhe deu um abraço, quase a matou de susto.
_ Fiquei imaginando onde você estava, disse-lhe Iara, procurei você por todos os cantos.
_ De certo não procurou direito, pois não me encontrou!
Beijaram-se e se abraçaram na maior felicidade.
            _ Minha amiga ficou me vigiando e, para não colocá-lo, em risco não saí.
            _ Vou esconder seu barco, pois alguém pode vê-lo na margem.
            Abraçavam-se e se beijavam o tempo todo, felizes por terem se reencontrado e ficaram juntos por um bom tempo, sem fazer perguntas um ao outros. Nos olhos de Zaki e de Iara, novamente, brotaram um pouco de esperança e de amor, ambos haviam sofrido em demasia e queriam aproveitar cada momento de juntos. Tanto Zaki quanto Iara sabiam que não podiam ficar juntos por muito tempo, era necessário que Iara voltasse para a sua tribo. Despediram-se num beijo demorado e combinaram de se encontrar novamente, dois dias depois.
            Iara chegou a sua tribo feliz da vida, era impossível alguém não perceber a mudança em suas atitudes e humor. Acreditavam que ela havia superado o trauma da morte de seu pai e as tragédias acontecidas com sua tribo. Teça foi o que mais gostou, pois até que em fim ela lhe dava sossego. Tanto Zaki quanto Iara não aguentavam mais a saudade, e não viam a hora de se reencontrar. O dia do encontro chegou. Zaki esperava ansioso para rever a sua amada. Quando avistou o barco, seu coração bateu mais forte, e com precaução, aguardou que ela chegasse à praia e a recebeu com um beijo. Ocultou a embarcação dela e se esconderam dentro da fortaleza.
            _ Iara, olha o que preparei para nós, espero que goste, disse-lhe Zaki.
            _ Sabe da impossibilidade de ficarmos juntos, minha tribo nunca aceitará, responde-lhe Iara.
            _ Sente-se aqui, comigo, e vamos aproveitar o tempo, deixemos nossas diferenças de lado, Iara. Depois, pensaremos no que fazer!
            Zaki sentou-se à beira da cama, ela se aproximou e ficou de pé entre suas pernas, ele foi alisando o seu corpo todo e devagar foi tirando as suas poucas vestes. Ficou encantado com o que via, parecia uma deusa de conto de fadas. Com carinho a deitou sobre a cama e amaram-se por um longo período. Quando estavam juntos o tempo corria rapidamente e a cada dia, um precisava mais do outro, e iam se apegando mutuamente. Eram vários encontros secretos, ninguém podia saber da existência daquele relacionamento, seriam sumariamente executados. Nasceram para serem inimigos, apesar de Iara desconhecer a origem de Zaki, que ele tivera participação nas mortes dos membros de sua tribo. Sempre que era possível, encontravam-se, e a cada dia ficava mais difícil de esconder os acontecimentos e insuportável ficar um longe do outro. Começaram a se encontrar fora do quilombo de Zaki, em alguns pontos da mata, cuidando para não serem seguidos. Todos na tribo e principalmente seu irmão começaram a perceber a mudança de Iara, seu sumiço cada vez mais constate, e decidiram segui-la. Num lindo dia de sol, Iara aproveitou o descuido de todos e saiu para se encontrar com Zaki. A amiga de Iara, no entanto, percebeu que ela estava saindo e, preocupada com a segurança da amiga informou a Teça. Ele e outros índios saíram em seu encalço. Iara ia à frente e eles a seguiam com cuidado. Zaki, que sempre ficava em um ponto alto para ver de longe a chegada de Iara, percebeu que ela estava sendo seguida. Ele escondeu-se e ficou aguardando os acontecimentos. Ela chegou ao local combinado e não encontrara seu amado, algo estava errado. Ficou muito preocupada, pois, nas vezes anteriores, ele já estava a sua espera, aguardou um bom tempo e nada, só restava voltar para a sua tribo.
            Teçá e os outros, já impacientes e sem saberem o que estava acontecendo, se apresentaram a Iara e começaram a interroga-la. Iara levou o maior susto e ficou torcendo para Zaki não aparecer. Disse que não estava fazendo nada e que já ia voltar para casa. Os índios não acreditaram e ela foi agarrada pelo cabelo e levada de volta a tribo. Zaki assistiu a cena de longe e não pode fazer nada, pois estavam todos bem armados e prontos para um ataque, além de estarem com sua amada nas mãos. Decepcionado, Zaki retornou para o quilombo, e ficou pensando no que iria acontecer com sua amada. Iara, como era filha de um ex-chefe, não poderia ser torturada para contar a verdade, mas se tornou vigiada, dia e noite, sem parar. Zaki já não aguentava mais de vontade de vê-la, e todos os dias de longe dava uma olhada para ver como ela estava. Aos poucos, a vigilância foi se afrouxando e permitiram que Iara saísse com sua amiga para pescar. Apanharam alguns peixes e Iara disse para a amiga que os limparia, o que fez com muita rapidez. Aproveitou o descuido de todos e rumou para o quilombo de Zaki, tinha algo muito importante para lhe falar. Atravessou o rio a nado até a praia do quilombo, e começou a gritar pelo seu nome. De repente ele apareceu e a tomou em seus braços matando a saudade, correram para o local onde sempre ficavam. Quando sua amiga voltou a beira do rio, percebeu o sumiço de Iara e começou a procurá-la, o que foi em vão. Ao regressar à tribo, Teçá percebeu o desespero da amiga de Iara e a pressionou para que lhe dissesse onde Iara estava. Ela os levou à beira do rio onde Iara ficara limpando os peixes, os quais estavam ali, limpos como que por encanto. As pegadas iam à beira da água e sumiam, a amiga foi obriga a lhes contar que Iara havia retornado ao quilombo e poderia ter sido encantada pelos espíritos que moravam lá. Teçá e outros índios resolveram ir até o quilombo, tudo indicava que Iara estaria lá. Os índios chegaram à praia em seus barcos, meio receosos, gritaram o nome de Iara. O casal levou o maior susto com aquela aparição imprevista. Iara disse à Zaki que iria se entregar à Teçá, pois, assim, levariam-na e o deixariam em paz. Zaki a deteve, pois não havia garantia que poriam fim à busca e temia pela sorte de sua amada. Zaki lhe disse que sabia como sair dali através de uma passagem secreta. Os dois fugiram pelos fundos da fortaleza sem serem vistos e entraram em uma caverna pequena. Zaki explicou que aquele poço se comunicava com o rio na parte externa, os dois mergulharam no poço mesmo com o medo de Iara em não encontrar a saída do outro lado. Não restava melhor opção a não ser confiar em Zaki. Depois de um rápido mergulho apareceram do outro lado o mais rápido que puderam. Logo Iara chegou à praia, do outro lado, e pregou um susto em sua amiga, que temia que Iara tivesse morrido ou se perdido. A reação da amiga foi de espanto e começaram a gritar Teçá e os outros que estavam no quilombo, um deles havia ficado na praia e percebeu que Iara estava do lado oposto e chamou por Teça e os demais, e partiu para a margem oposta. Teçá não estava com cara de bons amigos, e a amiga de Iara foi logo justificando que cometera um erro. Iara havia parado na praia apenas por ter se sentido mal e nunca mais havia voltado a pescar em frente aquele tenebroso local. Recebeu algumas repreensões, e tudo voltou à normalidade. Zaki observava tudo de longe e pronto para agir se algo desse errado, sua vida sem Iara não valia mais nada, mesmo. Iara havia dito que queria falar algo para Zaki, mas no meio de tanta correria, não tiveram tempo para conversar a respeito. Zaki ficou pensativo sobre o que seria. Iara, longe de Zaki, também pensava o tempo todo nele e tinha que arrumar um jeito de reencontrá-lo. Ela sabia que Zaki ficava de longe observando e, na primeira oportunidade, ela entraria mata afora e ele a encontraria, e assim ocorreu.
            _ Zaki estou esperando um filho seu, e não sei o que fazer!
            _ Podemos fugir juntos, Iara, para bem longe daqui e ter nosso filho.
            _ Não posso deixar minha mãe e minha tribo, teremos pouca chance sozinhos. Aqui, nosso filho pode ser criado em segurança, e não somos mais só dois.
            _ Iara, se tomar essa decisão nunca mais a verei, prefiro a morte!
            _ Temos uma chance, enfrentar Teçá, quem sabe ele nos deixa ficar juntos na tribo Zaki.
            _ Eu também não aguento mais fugir e me esconder, disse-lhe Zaki, enfrentaremos Teçá.
            _ Nossa tribo tem poucos homens e precisam de guerreiros, além disso, temos a tradição de acolher quem nos pede abrigo temporariamente. E você será o pai de um sobrinho do chefe Teçá, isso pode fazer toda a diferença.
            O estado de gravidez de Iara preocupavam ambos, então combinaram que enfrentariam Teça, pois ela esperava um filho do Zaki e a mistura dos dois povos se manifestaria em seu filho. Apesar de não saber qual seria a reação do chefe e da tribo, resolveram que não separariam suas vidas mais daquele dia em diante. Os dois voltaram juntos para tribo e se apresentaram na oca de Teça. Conversaram por horas, mas apesar de todas as explicações, Zaki foi preso e só não foi morto porque era pai de um descendente da tribo. Houve uma reunião entre todos os guerreiros remanescentes, o que não eram muitos, e foi decidido que Zaki poderia ficar até o nascimento de seu filho. Se, por acaso, a gravidez fosse interrompida, por algum motivo, Zaki perderia o vínculo com a tribo e seria executado. Um fio de esperança nasceu no coração de Zaki, mesmo estando enjaulado podia ver Iara e o desenvolvimento de seu ventre.Foi uma gestação conturbada e com ameaças de aborto natural, mas, enfim nasceu um menino com muita saúde. Um pouco antes do nascimento da criança libertaram Zaki, e o aceitaram na tribo.
 As misturas das duas raças gerou o primeiro descendente cafuzo, o qual recebeu o nome de Roani em homenagem a seu avô materno. Caso seu tio não tivesse filhos seria o próximo chefe da tribo. Zaki provou o seu valor para a tribo e resolveram que ele poderia ficar e criar seu filho. O amor de Iara e Zaki venceu todos os preconceitos e diferenças entre os povos.
            Zaki, entre outras coisas, ensinou a sua nova gente como fazer as carrancas e cultuar os deuses dele, e com isso, as tradicionais carrancas se perpetuaram até os dias de hoje nos povoados ribeirinhos ao rio São Francisco. Zaki resolveu também levar para a tumba o segredo sobre os conflitos anteriores entre sua gente e a tribo de Iara, se perdoando e perdoando seus antigos inimigos, que agora eram sua gente. Seu filho não merecia ser herdeiro de uma história tão triste, tinha o direito de construir a sua própria história. O segredo da passagem secreta para a fortaleza dos Carrancas seria mantido entre pai, mãe e posteriormente o filho Roani.

                                                                                               Kennedy Pimenta 🌶