UM SABER QUE LIBERTA _Aos meus pais_

Ao meu pai e à minha mãe (In memorian): potenciais de energia criativa e amor que me ensinaram a amar com alegria e luminosidade.

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Uma vez, no sonho de uma menina: um cenário repleto de cores, sons, sabores, texturas enriqueciam as múltiplas e plásticas realidades daquele corpo-mente. Ela sonhava todas as noites com voos longínquos, poéticos, plenos. Suas asas eram azuis e inteiras de sentido; asas companheiras, asas curativas, asas decididas!

Ao retornar do mundo mágico dos sonhos a menina nem sempre trazia consigo a lucidez do aprendizado onírico. Ela continuava presa ao mundo terreno, cristalizada por relativas verdades. Sentia, no entanto, lá no mais profundo uma inquietante sede das alturas.

Bebia a vida através do “bom assombro” diante das adversidades, do apaixonamento ao se deparar com o firmamento gotejado de estrelas. À luz do luar, ela respirava o encanto sutil que preenche os espaços cotidianos e buscava o divino na retina dos olhos que capturava aleatoriamente... a menina era só!

Não, a menina estava só! E sabia que o “seu amor” respirava, transpirava, inspirava e alimentava a sua estranha solidão... Onde te encontras? Tu que alimentas a minh’alma com o néctar da ausência!

O tempo passava e engolia os incautos, manobrava os egoístas, pactuava com a doce loucura dos artistas... cientistas, poetas; o tempo arrastava suas correntes enlouquecendo os imediatistas.

A menina, não se percebia presa às garras desse “senhor” tão temido. Pois, ela vivia suas vidas paralelas, sorvendo as gotas do presente... sendo parte dele. Sábia menina, louca criatura!

E assim, vivia uma alegria estranha... entregue ao olho do furacão onde razões, sentimentos, emoções se misturam sem recusas. E nesse vai e vem das intempéries da vida, num dia de cores ressonantes, entoado, cheio de luz e aromas, a menina é surpreendida pelo reconhecimento singelo do intenso amor, a Fonte de onde tudo precede.

Um pássaro de asas imensas pousa ao seu lado e os dois iniciam uma palestra, desejam saber-se mutuamente! A menina percebe nas plumagens brilhantes daquele pássaro a própria essência; o pássaro reconhece-se no reflexo da retina dos olhos da menina.

_Que lugar é este, banhado de azul, que vejo nos teus olhos?

_És tu meu amigo... que veio de um mundo distante para me contar segredos milenares, dos quais sempre desejei saber!

E o Amor foi reconhecido por ambos. Um pássaro encantadoramente especial, que trazia na sua plumagem as cores dos lugares longínquos por onde passara. Havia entre eles uma relação de profunda admiração, de assombro, de encantamento, de sintonia espiritual; um nutria no outro a pura poesia e uma magia transcendente de um sentimento atemporal.

Um sorvia o doce néctar da alma do outro numa relação etérea e sedutoramente impermanente! Eles sabiam o real significado desta impermanência; sabiam que ao se 'auto-pertencer', não importariam as ausências e o espaço-tempo em que a vida se movimentasse. O que realmente necessitavam era da sabedoria e grandeza daquele sentimento que estava além de qualquer convenção ou paradigma. Eles sempre se reencontravam revestidos das cores, sabores e saberes dos mundos distantes!

E assim, passado uma longa ausência eles se reencontram, após alguns vôos rasantes... o pássaro pousa! Menina, que saudade!

_Meu pássaro, que felicidade! Não passou um só dia nesses anos que eu não tenha sonhado contigo e voado em tua companhia!

_E eu não entendo, como tu com estas asas imensas ainda não tenha alçado voo!

_Meu amigo, meus horizontes são tão mágicos que mal consigo avistar! Somente em condições muito especiais posso me deleitar com maestria num voo como o teu. Somos seres alados, porém diferimos quanto à espécie... penso eu!

_É, nos compreendemos tão bem, nos amamos verdadeiramente, porém... acho que de tanto sair por aí sem pouso, me perdi de mim! Não sei mais quem sou, o que desejo desta existência. Nada mais me encanta! Sinto-me cansado de tudo... angustiado, impaciente, irresponsável, hedonista, sarcástico! A vida me oferece cálices com doces e sedutores néctares e a cada dia eu imaturamente bebo a todos eles como se sentisse uma sede eternizada... agora, embriagado nas percepções distorcidas das viagens vazias... já não desejo nada. Estou preenchido pelo tédio do cotidiano!

_Meu pássaro... encontra-te nos meus olhos! Tua natureza é alada e ainda tens muito a aprender e a ensinar. Tu precisas encontrar a rota dos desejos! Estás doente! Isto acontece quando somos 'encolerados' pelo ego, nos distanciamos, desconectamos do Universo e reprimimos as forças que revolucionam nosso ser, aprisionando as oportunidades de crescer e evoluir no 'contra fluxo'. Fostes contaminado pelo vírus do egoísmo... não voaste baixo quando as situações surgidas solicitaram; é preciso que relembres dos teus vôos, refazeres as rotas, os mapas, definir e amar as novas escolhas!

_Tuas palavras me inundam a mente, tua presença enfeitiça e quase consigo! Por instantes me percebo como outrora, mas, sei que jamais terás por companhia aquele amigo e irmão passado. Tua alegria, tua luz e tua espontaneidade... me incomodam... acho que vivenciei muito sofrimento, luxúria, maldade, por onde passei e acabei por assimilar esses referenciais. Quanta ironia! Sempre me senti tão sábio, responsável, íntegro, cheio de compreensão e discernimento e, contudo...

_Meu pássaro... posso entender do que falas, do que sentes! Mas, nada pode ser tão temível quanto à recusa em ser feliz! Encontrarás muitas justificativas, mas todas caem por terra quando sabemos que somos parte de um drama cósmico. Estamos vivendo tudo isto para sermos verdadeiros aprendizes da felicidade e do amor!

Felicidade e Amor são construções cotidianas que precisam ser identificadas com compaixão e desejadas como meta de ser e estar não só neste plano dimensional... o numinoso que transcende àquilo que pensamos ser. É necessário burilar a percepção, emergir da paralisia e da sonolência que nos torna indolentes e apáticos para este encontro com a Vida! Me ensinastes tanto... me fizestes perceber o grande segredo! E agora, depois de tantos anos vens querendo assaltar-me a alma e roubar isso de mim?

_Quisera ter voltado para ti antes de ser contaminado por esse mal... nunca ter que apresentar esta faceta escura do meu íntimo! Não quero te roubar a luz da alma... e mesmo que esse fosse meu intento, seria infrutífero. Tu és consciente quanto ao papel que desempenhas na vida. Não! Meu mundo azul era bem ajustado às minhas asas e de repente, dissolveu-se como papel após as inacreditáveis, tempestuosas chuvas de verão.

_Poderei cuidar de ti, meu pássaro! Amar-te-ei por nós dois e serás estimulado aos encantos que a vida segrega...

_Não menina! Não posso, não quero! Meu vazio não será preenchido desta maneira... com o sacrifício; meus desertos estão ardendo de aridez!

Os dois ficaram ali... impregnados por um 'tempo-espaço' sem precedentes, sorvendo da companhia um do outro para em seguida afastarem-se.

_Meu pássaro sem asas, nossas almas são uma só... mesmo que agora pareçam bipartidas. Saibas do meu amor por ti! E saibas que estarei à tua espera, quando resolveres marcar um encontro consigo mesmo e recolher os significados deste aprendizado.

O tempo, mergulhado em outros espaços, foi passando... a menina, buscando ressignificar os sonhos da sua memória, dos seus recantos, da sua vida. Olhava para o céu azul tentando captar a sombra do pássaro perdido... em vão!

A dor da alma transformou-se em entendimento, num aprendizado de ser, erotizado pela dança e mistério da vida, pela doçura, assombro e magia de viver o amor sem restrições, em sua mais bela dualidade, completude e "cosmoética". Aprendeu a debulhar os segredos de amar-se incondicionalmente, numa entrega que supera os meros estímulos epidérmicos e sensoriais que complementam os sentimentos. Portanto, aprendeu a mergulhar em águas turvas, bem como em águas límpidas sabendo que conhecimento é Luz e amor é Criatividade.

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Releitura inspirada na obra "A Menina e o Pássaro Encantado" do escritor Rubem Alves.

http://www.antroposofy.com.br/wordpress/historia-curativa-a-menina-e-o-passaro-encantado/

Seilla Carvalho
Enviado por Seilla Carvalho em 22/10/2009
Reeditado em 29/05/2017
Código do texto: T1881074
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