Nagali Baju


Cidade Perdida, que decepção! Nada é como eu havia imaginado, com templos escavados na rocha, túneis e passagens secretas cheias de armadilhas no melhor estilo Indiana Jones.
Ao contrário, a cidade parecia apenas um grande cemitério, com círculos gramados cercados de pedra, em diferentes alturas, uma escadona metida à besta, nenhuma casa. Que raiva! Preciso procurar outra agência de turismo! Só porque completei oitenta anos, não quer dizer que gosto de visitar cemitérios!
Entediada, sentei-me para esperar que o resto do grupo se cansasse daquilo ali também e resolvesse voltar ao hotel.
Foi quando senti a mureta em que me apoiara ceder.
– Cuidado, vovó! – ouvi alguém gritar.
Quase respondi que “vovó” é a vovozinha, mas estava muito ocupada tentando não desabar no chão. Porém, não só desabei, como continuei desabando. A pedra lisa e chata como uma prancha deslizou pela colina gramada levando-me com ela num enlouquecido esquibunda. Consegui evitar as árvores do caminho, jogando o corpo de um lado para o outro mas, à minha frente, cresceu um paredão e eu só tive a chance de proteger o rosto com as mãos. Estranhamente, ao invés de me esborrachar nele, atravessei-o como se ele fosse de gelatina e cai dentro de um laguinho gelado.
– Só faltava essa! Vou pegar uma pneumonia! – resmunguei.
Encharcada, apoiei-me no joelho para me levantar. Já esperava as dores e dificuldades de sempre, mas o que aconteceu foi que me pus de pé num salto, cheia de energia. Também me surpreendeu a facilidade com que subi a ladeira de volta. As surpresas, porém, estavam apenas começando. Ao chegar lá em cima, não foi o Parque Arqueológico em ruínas que encontrei, mas uma cidade completa! Ao centro de cada um daqueles círculos de pedra, havia uma casinha indígena. Tudo muito bonitinho, disposto em vários planos, com escadinhas e calçadas ligando as sacadas. Porém, tudo estava deserto e a impressão que eu tinha é que a cidade fora abandonada às pressas. Havia panelas esturricadas sobre os fogões à lenha ainda acesos, coisas derrubadas no chão...
Foi quando ouvi gritos. Corri em sua direção e me deparei com uma cena horrível: a oca central estava cercada por várias dessas lagartixas peladas de parede, mas grandes como gatos. Tinham garras afiadas e olhos fundos de fome. Eu cheguei justamente na hora em que uns quatro deles puxavam um garotinho pelos pés, enquanto algumas pessoas tentavam segurá-lo. Não sei o que me deu! Enchi-me de coragem e chutei os bichos com toda força. Surpreendidos, eles rolaram para as sacadas inferiores, soltando a criança. Uma moça acenou para que eu entrasse e eu achei melhor aceitar o convite, já que os lagartos estavam voltando. Lá dentro, os aldeões aflitos se encolhiam.
– O que são essas coisas? – perguntei.
– Nagali Baju! – ela falou.
Antes que conseguíssemos nos entender, os bichos voltaram à carga, batendo nas paredes. O povo se encolheu mais, gemendo.
– Vambora, moçada! – eu gritei. – Vamos expulsar esses iguanas!
Nada! Ninguém se mexeu. Resolvi que eu mesma precisaria fazer alguma coisa. Os bichos já estavam forçando a entrada da cabana. Com um gesto, consegui me fazer entender e alguns rapazes vieram segurar a porta. Tive uma idéia. Ia expulsar os monstrinhos com fogo. Peguei uma vassoura a um canto e o isqueiro do bolso.
– Droga! – falei, ao perceber que ele estava todo molhado e não acenderia.
Olhei em volta e vi que o sol entrava por uma fresta do telhado, fazendo um pequeno círculo no chão. Peguei meus óculos e os posicionei a poucos centímetros acima da palha da vassoura, focando a luz num único ponto. Em instantes, ela faiscava e logo o fogo se espalhou. Peguei aquela tocha improvisada e saí dali como louca, gritando e balançando os braços. Os bichos fugiram apavorados pelos platôs.
Quando voltei para junto dos outros, encontrei-os eufóricos.
– Nagali Baju! Nagali Baju! – repetiam, em festa.
Eu comemorei com eles, mas não estava entendendo nada. Diante da minha cara de boba, um velhinho se aproximou e começou a riscar o chão. Primeiro fez um lago e um homem velho e curvado entrando nas águas. Depois, um homem forte e altivo saindo delas.
– A fonte da juventude! – exclamei. – Então é por isso que me sinto tão bem!
Ele prosseguiu explicando que, sem a fonte, a cidade ficava vulnerável aos ataques dos seres da floresta. Neste momento ele ficou soturno e começou a rabiscar algo que parecia um homem de longas barbas, vestido em peles e cheio de colares de dentes de onça. Os outros que assistiam essa conversa recuaram, diante do desenho. Tentei adivinhar:
– Um bruxo?
O ancião mostrava o desenho e fazia gestos ameaçadores com os braços abertos, parecendo lançar raios com as pontas dos dedos. Então, ele apagou o desenho do lago com os pés e fez um barulho com os lábios:
– Puff!
– Não sumiu! Eu sei onde está!
Peguei a vareta que ele usava e desenhei minha desventura daquela manhã. Fiz sinal para que me seguissem ladeira abaixo. Com aquele povaréu andando atrás de mim, tentei refazer o trajeto da minha queda, mas não encontrei o paredão de gelatina.
Parecendo desapontado, o ancião explicou-me, por meio de mímica, que a fonte só pode ser encontrada por magia. Se eu a havia alcançado acidentalmente mais cedo é porque eu sou Nagali Baju.
– Eu? Nagali Baju não eram os calangos?
Ele continuou: para quebrar a maldição, precisariam realizar um feitiço à meia-noite na lua-cheia. A boa notícia é que aquela noite tinha lua-cheia. A má notícia é que, a lista dos ingredientes para o encanto era mágica. Cada elemento encontrado era a chave que mostrava o próximo e todos seriam difíceis de encontrar, como o único que aparecia: uma pena de filhote de águia cinzenta. Esses pássaros enormes e muito agressivos faziam seus ninhos no alto do morro que ladeia a cidade.
– Que seja! Vamos buscar a pena...
Ele entendeu meus gestos e apontou três fortes guerreiros para me acompanhar. Pegamos a trilha em direção ao morro.
Ao chegarmos lá, iniciamos a subida por uns cipós que pendiam das paredes. Quando já estávamos à meia altura, as águias começaram a nos atacar, bicando nossos braços, mãos, pescoços e o cipó. Eu fui a primeira a cair. Felizmente, consegui me agarrar numa rocha e não desabei como uma jaca, conseguindo proteger-me num pequeno vão, mas essa brincadeira estava perigosa, os outros talvez não tivessem a mesma sorte. Lembrei do meu espelhinho. Tirei-o da bolsa e, com ele, fiz o sol refletir nos olhos dos pássaros, impedindo-os de atacarem. Assim, os rapazes conseguiram chegar até o ninho e pegar algumas penas dos filhotes.
Ao encostar uma delas no livro sagrado, vimos o segundo item da lista: a unha de uma salamandra tigrada.
– Oh! – alguns disseram.
Vi que esse ia ser complicado, mas não entendi porquê. As salamandras tigradas viviam nas margens do rio Buritaca, logo ali. Descemos até a beira do rio e começamos a busca.
Depois de muito procurar, finalmente vimos o rabo de uma, saindo de debaixo de uma pedra. Eu agarrei sua ponta com força para ela não fugir e comecei a puxar. De repente, vi quem era o dono do rabo e entendi a razão do "Oh!". Não era uma salamandrinha como a do desenho no livro, mas um monstrão de quase dois metros de altura. Ele se virou para nós, furioso, e, com um assobio, chamou seus amigos, que nos cercaram e ficavam mostrando as linguonas bifurcadas.
Os rapazes brandiam as lanças, evitando que os monstrengos se aproximassem e eu, ali no meio, igual a uma pateta, sem saber o que fazer. De repente, um deles conseguiu derrubar um dos meus acompanhantes. Depois outro. Abaixei-me e peguei um bocado de terra nas mãos. Quando os bichos feios mostravam a língua, eu jogava a areia bem na cara deles, acertando os olhos e a boca, cegando-os por instantes. Aproveitei a oportunidade, peguei meu cortador de unhas e, segurando a pata de um deles com firmeza, consegui pegar nosso troféu, guardando-o cuidadosamente na bolsa, antes de eles se refugiarem na mata, enxotados pelas lanças de meus amigos.
Nem tivemos chance de comemorar. Logo eles voltaram, com a cara protegida por folhas de bananeira. Desta vez, estavam mesmo decididos a acabar conosco, nos cercaram e desarmaram.
– Estamos perdidos! – exclamei.
Mas, quando eles iam nos atacar, os aldeões apareceram e partiram em nossa defesa, gritando e jogando tudo o que se possa imaginar sobre os monstrengos: pedras, paus, cocos, panelas, tamancos e bolinhos de arroz... Diante desse exército, eles trataram de enfiar os rabos entre as pernas e escafederam-se pela mata.
O sol já ia se pondo quando entregamos o pedaço de unha ao sábio. Foi então que ele recuou, derrotado. No livro, surgiu o desenho da fonte mágica e três gotinhas. Não precisei de explicação. Precisaríamos da água da fonte para o feitiço! Mas como, se o feitiço era para achar a fonte? Me lembrei de quando era criança e pedia uma coisa pro meu pai e ele mandava ver com a mamãe e a mamãe mandava ver com o pai e ninguém resolvia nada!
Fiquei tão desanimada que lembrei dos meus remédios. Passara o dia me sentindo bem, não precisei tomar nenhum deles e agora...
– Os remédios! – exclamei.
Todos olharam para mim, assustados. Tirei da bolsa as caixinhas plásticas, onde guardo as muitas pilulinhas que os médicos me fazem tomar diariamente. Uma delas não fecha direito, certamente teria se enchido de água da fonte quando caí lá e talvez ainda contivesse algumas gotas. Justamente por este seu defeito, era nela que eu guardava o remédio que tomava primeiro. Assim, se a água tivesse entrado, estaria limpa e...
– Voilá! – mostrei o potinho a eles, ainda com água pela metade.
Acho que entenderam, porque o velhinho nos expulsou dali para preparar o feitiço.
Jantamos todos juntos na grande oca e, à meia noite, sob um luar magnífico, nos posicionamos em volta de uma grande fogueira, onde o feiticeiro foi jogando os elementos encontrados, enquanto murmurava sortilégios: primeiro a pena e as chamas ficaram acinzentadas, depois a unha e elas ficaram azuis... Enfim, ele derramou o conteúdo do potinho e a fogueira implodiu. Apagou-se de uma vez, para, em seguida, espalhar-se em mil foguinhos que demarcavam o caminho ladeira abaixo até a fonte.
Todos entraram nas águas. Ninguém ficava mais jovem, mas, ao saírem, estavam mais fortes e saudáveis do que haviam entrado. Não era uma fonte da juventude, e sim de energia vital. Resolvi entrar também e, quando toquei a água gelada, tudo sumiu.
Acordei cercada pelos turistas com olhares preocupados, que me molhavam a testa com água mineral:
– A senhora está bem? – o guia perguntou.
Olhei em volta. Estava novamente nas velhas ruínas, o povo Tayrona havia desaparecido. Ajudaram-me a levantar.
– A senhora bateu a cabeça... Melhor terminarmos o passeio e levá-la a um médico.
– Não, não... Estou bem. Acho que dá para continuar. – eu disse.
– Ah! Que bom! – disse o guia, aliviado. – Neste caso, prosseguimos nosso passeio por aqui, onde ficava o altar de sacrifícios ao prometido, Nagali Baju...
– Nagali Baju? – eu interrompi.
– Sim!
– Mas é Nagali Baju mesmo? – insisti.
– Posso lhe garantir, senhora! – ele disse, achando que era efeito da batida na cabeça.
– E Nagali Baju quer dizer “prometido”?
– Não! As cerimônias celebravam a vinda do prometido, mas Nagali Baju é como o chamavam.
– E o que significa?
– Significa algo como “velhinha porreta”. Não é estranho?
– Estranho pra você! – eu ri, rejuvenescida.
Tão rejuvenescida que poderia mesmo jurar que havia caído na fonte da juventude.


*****

Texto escrito para o 7° Desafio Literário da Câmara dos Deputados
Categoria Infantil - Etapa 6.

Clique aqui para ver o tema - provocação.