Choveu, naquele dia

A chuva corria fria pela noite e vi, parado na proteção de minha sacada, as pessoas se esconderem. Quando ninguém mais habitava a rua e a chuva ainda caia forte, isolei-me em meu refúgio escuro e coloquei-me a tocar. As notas do violão repercutiam pelo ambiente mórbido. A música de meu funeral era rápida e gritante, implorando pela libertação da morte. Eu estava morto e consciente de que ainda respirava.

Meus dedos sangravam. Eu havia passado todo um dia apenas a dedilhar e treinar, e agora, em minha fúria desesperada de paz, eu sangrava. As notas desafinaram em minha dor e o sangue as tornavam pesadas.

A sacada clamou por minha presença fantasmagórica e refugiei-me ali, sentindo os respingos em minha pele adormecidamente quente. Minhas mãos sujaram o balaústre de vermelho vivo.

Olhei para baixo, não parecia alto, mas letal. Num medo repentino da morte, corri escada abaixo. Esquecendo do copo que eu tacara mais cedo contra a parede da cozinha, numa crise entre várias, pisei nos casos e mais uma parte de mim sangrou.

Invadi o quintal e molhei-me até os ossos, até a alma. Sabia, sem ver, que deixara um rastro macabro de sangue em meus passos. Perdida, chorei até cair ao chão, fiquei sob a chuva até ela sumir, e permaneci ali até a lua aparecer e iluminar-me.

Levantei, vazia, uma casca oca. Os pensamentos eram tantos e desordenados que já não havia por onde começar e tornavam-se nada. A chuva permaneceu constante em minha solidão interna. Mais uma parte de mim sangrou, sem mais parar. Meus membros cicatrizados e doloridos me impediam de esquecer – ou de lembrar – dos cortes mais fundos. (Pois lembrar ou esquecer, tudo ou nada, mesclavam-se num mesmo).

Simplesmente, doía. Uma dor psicológica insaciável e aterrorizadora.

Voltei a minha sacada inconsolável – eu ou ela? –, tentando entender as minhas causas, sem êxito. Vi o céu escurecer num dia claro, e dentro de casa chovia e transbordava por meus olhos úmidos.

Sem sentido algum, sem nada além de mim mesma, em mim mesma, exceto tudo, caminhei pela sacada, sempre em frente. Senti o chão desabar sobre meus pés. Em minha queda infinita, pude ser que ela permanecia ali, intacta. Do chão não passa, mas passei. E céu chorou minha perna num sol radiantemente frio.