Herança pesqueira

A mareta açoita mais forte

a tardinha meio cinzenta,

a água gelada e barrenta

beija barrancas arenosas.

Minha mente prodigiosa

enfuna velas com o vento

e navego em pensamentos

nestas águas caudalosas.

Moro em cada instante

do anoitecer deste rio,

e trago por desafio

conservar este berçário,

que é parte do relicário

doação do Pai Divino

que amarrou o meu destino

como as contas de um rosário.

Vivo meu tempo costeando

as barrancas do Uruguai,

fui filho e hoje sou pai,

pescador de profissão,

nunca usei minhas mãos

pra exercer outro ofício,

chalaneio, quase por vício

e pesco por opção.

A tarde morre de manso

e o vento se arrefece,

até um biguá aparece

buscando o sarandizal,

garças sobrevoam o ninhal

num estridente alarido,

alvejando o colorido

das ilhas do banhadal.

O tajã... clarineia e revoa

prenunciando o fim do dia,

uma capivara arredia

se manda barranca abaixo

o ronco do bugio macho

ecoa pela flor d’água

um sorro late sua mágoa

costeando a beira do mato.

Dou nado para a chalana

e vou buscar meu sustento,

esqueço por um momento

que sou parte desta obra,

o que a natureza me cobra

é apenas o essencial:

Eu cuido do manancial

e o peixe é o que me sobra.

No trono em que varo águas

me sinto o próprio Netuno,

neste reinado noturno

meu barco engole espaços

os remos abrem os braços

em braçadas de vem-e-vai

querendo envolver o Uruguai

num longo e fraterno abraço.

O espinhel carregado

me enche de esperanças,

amanhã, minhas crianças

na mesa terão fartura,

as vezes a vida é dura

e as dificuldades imensas

mas, Deus dá a recompensa

à todas suas criaturas.

O peixe, é um alimento

consagrado no evangelho;

no dia em que ficar velho

quero continuar redeando,

aos meus netos ensinando,

que esse rio nos traz a vida

e quando eu ensejar a partida,

eles... continuarão pescando.

É a herança que eu deixo

à toda minha descendência,

a pureza e a aparência

deste rio que não é nosso,

e faço tudo que eu posso

pra manter a integridade

devolver pra humanidade,

recursos e não destroços.

Quando cruzar a fronteira

pro lado de trás do horizonte;

Talvez de lá, eu aponte

o rio que me deu a sorte,

de ouvir depois da morte

a música que me consola

o “chuá-chuá” das marolas

e o uivo do vento forte.

Quero morrer nestas águas,

que viu o guri e fez o homem;

no vento e na areia se somem

os sonhos de quem viveu mais

quando eu atender a Deus Pai

e abandonar este mundo,

quero um buraco bem fundo

nas barrancas do Uruguai.

Poesia premiada com o 2º Lugar no III Concurso de Poesia Temática do Rio Uruguai em Uruguaiana-RS.

Autoria própria.

Seu Jorge
Enviado por Seu Jorge em 21/08/2007
Código do texto: T616541