Deixe-me te aquecer

Em meio a tantas histórias, existe uma que mexe mais com meus instintos. É a história de um mago.

Muitos o conheciam, muitos admiravam suas magias que sempre tinham as palavras como ingredientes. Diziam ser solitário. Mas como um mago dotado de preciosa magia podia estar sozinho? Entre as vielas da vila onde toda tarde eu passeava, ouvi dizer que ele tinha uma paixão, uma feiticeira que conhecerá a pouco tempo.

Certa vez, ao atravessar um grande portão de vidro, o mago cruzara com ela, ele já tinha a observado durante alguns rituais, mas a postura solene dela deixava-o incapaz de ultrapassar os protocolos e por isso, ele se fazia de indiferente.

Frente a frente em um pequeno espaço, eles se entreolharam. Ao encarar a feiticeira, o mago foi tomado por uma magia nunca vista por ele, seus poderes se tornaram inúteis diante de tanta magia. Os pés do mago gelaram, um forte frio lhe tomou o estômago, e ciente da transparência do seu estado pronunciou apenas uma frase: “e esse frio?” Foi a primeira coisa que lhe veio a cabeça, talvez a feiticeira não estivesse com frio, mas esta era a sensação que o mago sentia. Frio em todo o corpo.

O mago vivia em uma grande colcha de retalhos, e por ironia, tinha a feiticeira como vizinha. Mesmo morando lado a lado, eles nunca tinham se falado, mas o mago sempre a observava no final da tarde quando ela colhia uvas.

A imagem da feiticeira era como um bálsamo para os olhos do mago, ele desejava estar próximo da feiticeira, queria que ela penetrasse em sua alma, e através dos olhos visse o quanto está sedento de paixão, loucura e desejos proibidos.

Não mais vivia o mago, passava o dia a observá-la, suas mãos trêmulas, faziam das letras curvas e imaginava ser as curvas de sua – agora mais do que nunca – musa.

A magia dos seus mundos não permitia tão ousadia, e a feiticeira indiferente, nunca lhe ofertou um olhar. Os fantasmas do desconhecido já tinham dominado o mago, o medo, a solidão e os temores naturais dividiam o minúsculo espaço que era o mundo do mago.

Mas um dia, disposto a quebrar qualquer regra, disposto a usar todo seu poder, espreitou a feiticeira no regresso de mais um dia de colheita. Ela não ouviu o seu chamado – ou fingirá não ouvir – decidido, ele a chamou mais uma vez. Ela parou e procurou nos quatros ventos de onde vinha àquela voz. Não seria uma simples voz. Quem ouviu, contou que foi a mais linda declamação com o som da natureza como fundo musical.

Presa à costura que a envolvia, a feiticeira deixou cair seu cesto de uvas. Teria a feiticeira se assustado? Se desfazendo de qualquer pensamento contrário a atitude tomada, o mago lançou seu olhar sobre a feiticeira. Ele levou um longo tempo preparando aquele ataque e acreditava que os seus olhos fossem capazes de deixá-la envolvida, ao menos, deixa-la inerte por rápidos minutos, e assim, contempla-la e descobrir de onde vinha aquele feitiço que o dominara. Uma força igual a de um redemoinho surgiu envolta dos dois.

Dona de vastos conhecimentos, a feiticeira era um ser único para o mago. Ele era iniciante comparado a ela, mas, sábio o suficiente para saber que estava envolvido, submerso a uma loucura, de frente a barreiras, proibições e regras que os separavam.

A beleza da feiticeira o confundia, ela era misteriosa, seu olhar ora dava medo, ora o seduzia. Ele queria abrir o coração, a verdade é que ele queria explodir. Com certeza voariam inúmeras palavras e juntas diriam que ele realmente sentia.

O mago se identificava com um exótico peixe que um poeta da vila sempre sua história contava. O peixe habitava em uma caverna. A escuridão do lugar mais a cor escura dos olhos do peixe, acabara por trazer-lhe uma cegueira: não havia necessidade de enxergar, já que o ambiente colocava seus olhos em desuso. Além do mais, o ambiente lhe era francamente acolhedor. Muito embora cego, o peixe reconstituía-se, a cada instante, nos seus sonhos, na sua fluidez, nos seus dois elementos essenciais: a mobilidade e a leveza, que lhe davam uma condição suficiente, definitiva e surpreendente de todos os dias, a partir do pôr-do-sol, transformar-se em um mago – era assim que digeria seu destino e transformava-o em fonte de calor.

O mago descobriu que todas as suas magias necessitavam de um ingrediente para se tornarem perfeitas: a paixão.

Michel Leal
Enviado por Michel Leal em 21/11/2005
Reeditado em 19/02/2016
Código do texto: T74259
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