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Oposição


 
  Um relâmpago cortou a alvorada e revelou à multidão que circundava o caixão a face pálida de Domingos Dias. A vasta barba br     anca, na altura do peito do defunto, parecia prateada depois de absorver tanta água da chuva. Os braços fortes cruzados por cima do terno italiano  lembravam a Ricardo Mendes a força de caráter que aquele homem possuíra em vida, embora o cadáver estivesse rígido mais por rigor mortis do que por Domingos ser o homem de aço que suas campanhas eleitorais tanto anunciaram. O ataúde de madeira de lei (ilegalmente obtida) foi fechado, talvez mais para proteger o morto da chuva do que por rito fúnebre, e descido até as profundezas da terra, operação que foi registrada, anotada, fotografada, filmada, televisionada e transmitida pela internet algumas dúzias de vezes. Não é direito dos ricos apenas viver melhor do que os pobres; a eles também cabe morrer de forma muito mais suntuosa.

  Sempre chove na Amazônia. Todo santo dia, sem trégua ou exceção, desde que Deus criou o mundo, e até o dia em que o Criador tiver o bom senso de corrigir a porcaria que ele fez. Mas hoje era pior. Enquanto dias comuns eram acariciados por leves garoas, São Pedro resolvera enviar quase que uma tempestade para anunciar ao mundo a partida de um homem tão imponente. A chuva torrencial não perdoava lápides nem pessoas, e mais de um guarda-chuva demonstrou menor qualidade do que o ambulante na porta do cemitério anunciara. Ou mais de vinte, pensou Ricardo Mendes, ao correr o olhar pela turba que cercava o sarcófago por todos os lados. Os familiares, amigos, fãs, e toneladas de jornalistas, haviam lotado o Cemitério Parque de Manaus.

  Porém, enquanto Ricardo se afastava da multidão em direção ao estacionamento, ele percebia que não esperara menos. Não era apenas o enterro de um ex-governador do Amazonas, era o enterro do maior governador que aquele estado já tivera. Domingos Dias fora homem de verdade, tivera culhões para falar o que a oposição não queria ouvir e fazer o que os fracos não queriam ver. Domingos havia marcado sua importância na história do estado ao mostrar para os sulistas que a Amazônia não era só terra de índio e vagabundo, que aqui também tinha homem para colocar as mulheres e as bichas no seu lugar.

  Dobrando para entrar na Avenida Maceió, Ricardo olhou o retrovisor e acabou passando alguns segundos contemplando a própria imagem. O cabelo antes vistoso era agora ralo no topo da cabeça. A barba que antes tanto o orgulhava agora estava descuidada a várias semanas. Os dentes brancos haviam se amarelado, embora continuassem desigualmente espaçados. Os olhos de águia, que antes anunciavam claramente a presença de um homem de ação, agora precisavam de óculos para enxergar alguns poucos metros. Do resto, Ricardo não precisava que o espelho o relembrasse: as pelancas nos braços, os quilos na barriga, os calos nas mãos. Só o que salvava Ricardo da realidade deprimente de seu deterioramento era pensar que ele ainda devia ter mais algumas poucas décadas pela frente, ele ainda não estava no ponto de acompanhar Domingos Dias ao Céu ou ao Inferno.

  Mas o que Ricardo mais sentia falta era dos amigos. Ele estava cansado de ir a tantos enterros. O negro Heitor, seu amigo desde a infância, sempre lhe parecera uma fortaleza inabalável de músculos, até que a porcaria de uma BMW quebrasse essa ilusão e todos os ossos do homem, ainda por cima tendo a cara de pau de fugir para não ter que pagar indenização. Afonso, magro feito uma vara e narigudo feito um judeu, pegava seu barquinho e ia todo ano na época da procriação para pescar no Solimões; era proibido, mas não para um amigo do governador. Pois no ano anterior, após duas semanas de procuras na floresta, encontraram o barco dele boiando, vazio. Ao menos Domingos Dias havia tido a paz de uma morte natural, refletia Ricardo. E ao menos eu sou o sobrevivente deles todos. Ele sempre soubera dos efeitos corporais da velhice, todo mundo sabe, mas os efeitos sociais são menos comentados sem serem menos impactantes. Ricardo não estava acostumado a ficar sozinho assim, sem ter com quem dividir os reclames da idade.

  Mas a coisa nem sempre fora assim. Nos anos dourados em que Domingos governava o Amazonas, Ricardo fora seu braço direito, ele mesmo havia falado isso. Ricardo, Heitor e Afonso já foram jovens, já foram fortes, já tiveram energia, e fizeram ao governador mil favores e tarefas pelo Amazonas, que Domingos não cansava de agradecer. O estado não estaria de pé sem vocês três, ele dizia. Mas Ricardo não era celebridade como seu chefe, não teve de responder a mil jornalistas no meio do enterro como a pobre esposa de Domingos. Os favores que Ricardo prestava ao Amazonas geralmente não eram divulgados. Eram serviços mais… sujos.

  Como daquela vez em que Domingos se reelegeu, quando aquele raio daquele índio resolveu se candidatar e aparecer na tevê dizendo que ia preservar os animais. Os quatro amigos não cansavam de rir, até que as pesquisas mostraram que o filho da puta estava ganhando. E não por pouco. Com a infinita sabedoria que Ricardo não cansava de admirar, Domingos Dias notou que o povo da Amazônia tem pouco estudo e entendimento, não sabe escolher político; é dever do patriarca da Amazônia usar seu discernimento para fazer essa escolha por eles. E você, meu amigo Ricardo, vai ter um papel muito importante nisso. Eu preciso da sua ajuda para salvar o Amazonas.
 
  José Yanomami bebia sozinho em seu bar preferido da Cidade Nova. Por “preferido” entenda-se “mais barato”, e não poderia ser diferente, porque depois de ser pobre e tocar uma campanha eleitoral, só sobram as moedas. Ele não se cercava de assessores e puxa-sacos como faria Domingos Dias; os amigos de José eram o povo, e o povo lhe fazia companhia diariamente naquela época, debatendo, empolgados, o futuro. E falando mal de Domingos Dias, é claro. Mas por mais apoio que o povo lhe desse, ninguém em Manaus aguentava beber cachaça pura até as cinco da manhã como José Yanomami aguentava. Essa capacidade só despertava mais admiração nos seus eleitores, principalmente nos jovens, mas o resultado era, invariavelmente, ver o sol nascer sem nenhum companheiro para dividir a visão. A essa hora, no bar, só haviam um negro e um magrelo com cara de rato em uma mesa afastada, que discutiam animadamente as perspectivas nada animadoras do Brasil na Copa do Mundo. Mas José estava bêbado demais para dar atenção a eles. Ele percebeu, com certa decepção, que já estava bêbado mais que o suficiente por hoje.

  O índio se levantou, se esquivou dos xingamentos do bodegueiro, pendurou a cachaça do dia no fiado junto com as outras da semana, pôs as mãos nos bolsos e saiu a passo pelas ruas de Manaus. Seu apartamento ficava a mais de um quilômetro dali, mas era o preço a se pagar pelo menor preço de bebida. E não era ruim; não com o álcool para distrair o cérebro e esquentar o corpo. As pernas de José já haviam decorado o caminho para casa, e ele não se importava em ver a mesma paisagem todas as manhãs; a selva de pedra silenciosa, que de alguma forma lhe lembrava a selva de onde ele viera.

  Com o porém de que esta manhã não estava silenciosa, não como as outras. Os perseguidores de José tentavam fazer o menor ruído possível com seus passos, mas José os ouvia. O índio levou um segundo ou dois a associar o som estranho com sua fonte, não mais do que isso. Ele não virou o rosto, é claro, mas pelo reflexo de uma poça da chuva da noite anterior, ele viu que eram o negro e o magro. Claro, tinham que ser.

  José não tinha tempo a perder, sua vida estava em risco. Segurando a respiração para não deixá-la sair de ritmo, segurando seu coração para não deixá-lo sair de controle, José testou os homens que o perseguiam. Quando ele apertava o passo, os sons das pisadas se intensificavam; quando desacelerava, os sons se amainavam. Mas e se ele tentasse dobrar a esquina?

  Ninguém conhecia aquele canto de Manaus como o velho índio. Ele rezava para que seus instintos não o abandonassem agora. José entrou em vielas, saiu de becos, se escondeu em buracos, pulou muros, se esgueirou por cercas. Ele fluía pelas ruas como um rio por seu leito, entrando por cada fresta e saindo por cada poro. E deixando por onde passava a tremulação de suas mãos, o cheiro de seu suor, o odor de seu medo. Os sons dos passos dos dois homens se misturavam com a respiração ofegante de José como em uma orquestra: formavam um conjunto só, mas o ouvido atento sabia identificar cada instrumento.

  José pulou uma cerca de madeira e parou por meio segundo para escutar. Não ouvia mais os passos dos homens que o perseguiam. O índio se permitiu um suspiro de alívio, mas baixinho. Retomou o caminho para casa, apertando o passo, não podia correr mais nenhum risco. Cada passo parecia uma vitória, e o próximo, a dúvida do futuro. Cada passo entrava no ritmo se sua mente… ritmo? O que são essas outras notas nesse ritmo?

  Suando frio, José virou o rosto para trás bruscamente, bem a tempo de ver seus perseguidores pulando a cerca e correndo em sua direção, sem cerimônia. Pior, agora eram três; um terceiro homem, mais baixo que os outros dois, havia se juntado à caçada. Pior, agora eles traziam pistolas em mãos. Pior, o terceiro homem fazia mira para ele.

  José segurou um grito e se pôs a correr. O perigo era agora muito mais literal. Ele se jogou para dentro de outra viela, meio segundo antes das balas estraçalharem o reboco da casa da esquina e vararem a calçada. Conforme José correu rua abaixo, mais balas o perseguiram, atingindo o chão a milímetros de seus pés. Ele ofegava, ele hiperventilava, cada músculo de seu corpo reclamava com o esforço sobre-humano que lhe era imposto. Mas as balas eram mais rápidas que José Yanomami. Elas lambiam as paredes, ricavam o chão, ensurdeciam o índio que tanto precisava escutar os passos dos homens que o caçavam.
 
  José havia se enfiado novamente no mesmo labirinto de ruas onde os havia despistado antes, escoando entre frestas e buracos e rezando para que eles não tivessem aprendido o caminho da primeira vez. Mas os passos dos homens eram tão ruidosos como seus tiros, pareciam desturir todos os refúgios por onde passavam. Pareciam cada vez mais próximos, cada vez mais…!

José escutou com os ossos do cotovelo esquerdo o estampido daquele disparo. A bala certeira não havia errado daquela vez; havia encontrado ele, havia invadido ele, havia estraçalhado ele, havia roído sua carne, moído seu osso, derramado seu sangue. O mundo, antes uma escuridão que clareava aos poucos, se tornou vermelho-sangue ao redor dos olhos de José. Seu braço pulsava como um motor, fazendo o mundo tremer e bombeando sua alma para fora. José encomendou sua alma ao Criador…

  … mas então percebeu que suas pernas não haviam parado. Elas corriam pelas calçadas, saltavam muros, chutavam porteiras, guiadas por um senso de autopreservação que parecia próprio. Mesmo pulsando com a vida que se esvaía, seu corpo parecia invadido por uma adrenalina de quem não vai desistir enquanto respirar. Perdido entre a realidade e o delírio, ele tentava encontrar em cada canto daquela cidade um lugar onde os caçadores não encontrariam sua presa. Eles pareceram perceber a determinação do índio, porque não pararam de atirar por um momento sequer, e ainda uma segunda bala raspou o ombro de José. Mas ele persistiu. Sem saber como, ele persistiu.

  Sangrando um rastro indelével e suando o que parecia ser a última de suas forças, o índio pulou um muro e se escondeu atrás dele. Ele mordeu um pedaço da camisa para tentar ignorar a dor que o invadia e a pulsação que o confundia, e prestou atenção nos sons ao redor. Os passos haviam cessado. E por Deus, os tiros também. Chorando de medo e agradecendo aos Céus chuvosos da Amazônia pelo milagre, o índio ergueu os olhos, de encontro ao taco de beisebol que o terceiro homem descia contra sua têmpora.
 
  O solavanco da suspensão do carro revelou a José que ele ainda estava vivo.

  Exasperado, saltando para fora da sonolência, ele abriu os olhos, mas seria o mesmo que não tê-lo feito, pois o mundo ao seu redor era escuro. E barulhento; José não se lembrava de nenhum carro com um motor tão ruidoso assim, e os vários solavancos do banco indicavam uma estrada muito esburacada, provavelmente de chão batido. Mas por mais que se esforçasse, José não conseguia escutar mais som algum além destes.

  Ele se debateu, mas já sabendo que seria em vão, pois seus dois braços foram segurados por braços mais fortes. Quando seu cotovelo esquerdo atingiu o corpo de seu captor, foi só para causar muito mais dor nele próprio; mil agulhas se cravaram ao redor de seu braço quando a região baleada foi pressionada. Isso se somava com a dor de cabeça que fazia José latejar na mesma frequência dos solavancos; ele não se lembrava jamais de uma ressaca tão pesada, certamente não de uma tão violenta. Mas talvez o pior fosse perceber, por tato e por olfato, que em algum momento ele havia se mijado.

  O carro parrou com uma freada súbita, e José foi arrastado para fora, se debatendo inutilmente. Ele sentiu os homens o jogarem contra um tronco, e darem várias voltas de corda contra seu corpo cansado e flagelado. O índio tentava gritar, mas a trouxa em sua boca o tornava mudo.
  
  O saco foi arrancado de sua cabeça com a mesma violência com que tudo aquilo fora feito. A luz feriu os olhos de José ao lhe mostrar o carro estacionado no meio da floresta, com o magrelo narigudo sentado ao volante, sem qualquer indício de estrada de terra por onde eles poderiam ter vindo parar ali. O negro na frente de José parecia rir da situação toda, e quando o índio olhou para sua esquerda, foi para ouvir o ronco do motor da motosserra que o terceiro homem lançava contra seu pescoço.

 
  O corpo inteiro de José tremeu conforme os pedaços de carne, osso e sangue que ligavam seu tronco à sua cabeça eram lançados voando por entre as árvores, gerando um círculo vermelho ao redor de seu corpo. Tendões foram fatiados, cartilagens, vaporizadas. Ele mordeu a língua, vomitou sangue, seus olhos se tornaram vermelhos e opacos. Sua cabeça caiu para um lado e o tronco da árvore à qual ele estava amarrado, para o outro. O homem com a motosserra, lavado de sangue, suspirou após mais um serviço bem-feito.

 
  Ricardo acreditava que todo mundo deveria ter uma motosserra naquela parte do Brasil. Era uma ferramenta muito útil para se livrar de árvores e esquerdistas. E ninguém vai estranhar ouvir uma no meio do mato.

  O limpador varreu o vidro do carro de Ricardo conforme ele entrava nas ruas de seu bairro, e lhe permitiu ver uma mulher parada na próxima esquina, admirando o trânsito. Se via de longe que era índia, e de mais longe ainda que ela era bastante… econômica com suas vestimentas. Puta. Ricardo se pegou admirando os volumes da moça, percebeu que a mera visão dela fazia seu sangue correr mais veloz. O mero pensamento o fazia se culpar como a um criminoso; sua esposa o estava esperando em casa, devia estar preocupada com essa chuvarada toda. Mas essa garota, nesse lugar, nesse horário, nessa chuva, e bonita desse jeito? Será que Ricardo era homem o suficiente para conseguir recusar isso?
 
  Sem perceber o que fazia, ele estacionou ao lado dela, baixou o vidro, e ela prontamente pôs a cabeça para dentro para perguntar no que poderia ajudar. Tremendo e gaguejando, sem acreditar nas próprias palavras, Ricardo foi direto como pôde, quanto a belezinha cobrava para vir para o banco de trás com ele? Não havia motivo para achar que adiantaria de alguma coisa tentar conquistar por charme uma mulher que seria conquistada pelo dinheiro. Era o que ele dizia para si mesmo. E, no momento, ele tinha mais dinheiro que charme para oferecer.
 
 A resposta dela o surpreendeu: ela tinha algo melhor a oferecer do que um banco de carro. Ela o convidou a sair, o que ele fez se esforçando ativamente para não ver as feições da esposa na face da índia, e o trouxe pela mão para a porta da casa da esquina. Ricardo notou o fato curioso de que não havia uma luz vermelha na porta, e por meio segundo ele pensou ver uma sombra de preocupação passar pelo rosto da índia. Mas ela respondeu simplesmente que aquele era um lugar diferente do que Ricardo estava acostumado.

 Ele não se importava, não mais. Ele não se importava com a saleta simples em que ele havia entrado, não se importava com a TV de tubo na estante, não se importava com as paredes de madeirinha, não se importava com o grande sofá que destoava da pequenez do resto. O que importava era o agora, era ela. O que importava para ele era apreciar a forma como a jovem índia o sentava no sofá, como ela desabotoava as calças dele para estimulá-lo com beijos mais íntimos, a forma como ela abria o zíper do casaco dela para mostrar que a beleza em seus seios não estava só no volume, a forma como ela o deitava no sofá e se encaixava nele e dançava com o corpo dele. A forma como ela parecia remover todo o cansaço do dia de Ricardo, da vida de Ricardo, era isso o que importava. Ele sentia seu sangue fluir rejuvenescido, ele se sentia como um garoto novamente. A verdade é que ele sentia que aquela garota havia feito amor com o coração de Ricardo de uma forma que sua esposa não fazia a anos.

  Serviço feito, a índia se levantou e se ofereceu para ir buscar um Martíni na geladeira. Extasiado, Ricardo nem percebeu que concordava vagamente com a cabeça. Da forma como veio ao mundo ela sumiu na cozinha, e da forma como veio ao mundo Ricardo ficou afundado no sofá, entorpecido, sorrindo, bobo, tentando se convencer a não fazer planos, mas começando a perceber que calculava quantas vezes mais ele conseguiria visitar a dona de seu coração. Enquanto admirava as colagens de jornal na parede oposta, ele tentava dizer a si mesmo que não era o tipo de homem idiota que perdia todas as economias se apaixonando por puta, mas a voz de sua consciência soava cada vez menor e mais distante…

  Colagens de jornal? Conforme o efeito do corpo da índia foi passando (e conforme ela se demorava para trazer o tal do Martíni), Ricardo começou a reparar melhor naquilo que via. Ele se sentou no sofá e tentou decifrar a quimera de fotos, recortes, textos, barbantes, clipes, alfinetes e ofícios que preenchiam uma parede inteira da casa daquela índia. Por que, no Céu ou no Inferno, aquela puta tinha optado por uma decoração dessas?

  E foi então que Ricardo reparou melhor no conteúdo daquela tapeçaria.

  Ele viu uma foto de Heitor, reconheceu como a foto da identidade do homem, pendurada na parede por um alfinete, junto com um mapa impresso do Google Maps indicando o trajeto que ele fazia para ir e voltar do trabalho todos os dias. Pendurada em um alfinete próximo, estava a chave de uma BMW.

  Ele viu uma foto de Afonso junto com a família em algum aniversário de criança, grampeada a uma fotografia aérea do Solimões, com a rota de seu barco traçada a caneta. Em um ponto a uns cinco quilômetros a oeste de Manaus, uma posição estava marcada com um X. Não, olhando melhor, não era um X, mas sim um pequeno desenho de um arco cruzado sobre uma flecha.

  Ele viu uma foto de Domingos Dias, recortada de algum jornal, pendurada próxima a uma carteira de trabalho carimbada pelo Palácio do Governo. No mesmo alfinete da foto, havia uma bula de remédio.

  Ele viu uma foto de José Yanomami junto com uma menina que devia ter uns dez ou doze anos; eles sorriam orgulhosos e ela trazia nas mãos um arco de alumínio e nas costas uma aljava cor-de-rosa. No mesmo alfinete, um certificado congratulava Patrícia Yanomami pelo segundo lugar nacional em arco-e-flecha, categoria ensino fundamental.

  Atônito com o absurdo que via a sua frente, Ricardo não arriscava piscar um olho, não ousava emitir um único som. Foi juntando o resto de sua coragem que ele examinou o último trecho da tapeçaria, onde encarou o fundo dos olhos de sua própria foto, grampeada a um mapa que mostrava o Cemitério Parque e a localização de sua casa, e a uma fotografia exibia um hectare de troncos serrados na base.

  E foi então que, passo ante passo, de forma lenta e barulhenta, como se esbarrasse em vários objetos e arrastasse o próprio peso, uma sombra de belas formas femininas foi cobrindo a tapeçaria na parede diante dos olhos de Ricardo, englobando a ele e a toda a loucura diante dele relacionada. O homem agarrou as bordas do sofá com toda a força renovada e se segurou como pôde para não urrar de medo. Mas quando ele inevitavelmente se virou para enfrentar o monstro que cobria o sol, o som rouco de seu grito de desespero foi abafado pelo ronco da serra elétrica. Nua como fora concebida, com a mesma face serena e dominadora como fora possuída, a índia por quem ele se apaixonara havia voltado com aquilo que fora buscar.

  Algo dentro de Ricardo se obrigou a lhe dizer que depois de todos aqueles anos ele ainda era um homem de ação. Seus braços se moveram de forma mais rápida do que precisa no meio do caos sonoro, e ele teve a infeliz decisão de aparar com o braço direito a motosserra que a índia descia contra ele. Ele urrou a alma quando os dentes da máquina arrancaram sua pele, rasgaram seus músculos, moeram seus ossos, e ejetaram seu sangue pelo teto e pelas paredes, lavando a índia nua diante dele daquilo que um dia havia sido, mas nunca mais seria, a sua mão. Seu cérebro se tornou um vulto de dor, sua visão se tornou um turbilhão vermelho, e toda a região do seu braço parecia estar condenada ao fogo do Inferno.

  Os reflexos do homem se obrigaram a fazer o que sua consciência serrada já não mais podia: perdendo mais um dedo no processo, o instinto de Ricardo jogou o sabre da motosserra para o lado, abrindo um rombo no sofá empapado de seu sangue. Ele se pôs de pé e começou a correr (ou melhor, rastejar) como um animal acuado que segue apenas suas entranhas em seu instinto de sobrevivência. O animal dentro de Ricardo varreu o olhar pela sala enquanto a índia recuperava a motosserra do sofá. O animal identificou um corredor na parede da tapeçaria, e se atirou por ele, correndo com três patas, sem arriscar deixar que a quarta tocasse no chão. Mesmo o animal só conseguia trabalhar entre ondas de fogo que duravam vários segundos e pareciam se espalhar de sua mão para seu corpo inteiro. O animal percebeu que aquilo no final do curto corredor era uma porta, e se atirou contra ela de toda forma que pôde, suando, chorando, sangrando, gemendo, e nada disso aliviava nem minimamente o fogo que absorvia a alma de Ricardo por sua mão direita. O animal ouvia o rugido de seu predador se aproximar, o animal via a sombra do predador engolir as paredes, o animal entrava num surto de adrenalina que destruiria qualquer coração. Mas o problema aqui presente, simples posto desta forma, é que animais não sabem usar maçanetas.

  Ricardo nunca chegou a se mijar, porque ela começou pela virilha.



TEMA: Romance Proibido
Total de Palavras: 3999 palavras

 


 


 
  

 

  
 
 
 
 
 
 
 
 
DTRL Desafio de Terror Rascunhos Literários
Enviado por DTRL Desafio de Terror Rascunhos Literários em 09/08/2019
Reeditado em 09/08/2019
Código do texto: T6715877
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