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Doce Veneno

 

 
  Romualdo vivia sozinho. Desde que se tornara cadeirante, após um acidente de carro, transformara a ampla sala da frente em escritório, cozinha e sala de estar. Tinha ali sua mesa e materiais de trabalho, a televisão e seus livros, um frigobar e um armarinho de madeira onde guardava os mantimentos. Almoçava e jantava ali. Saía daquele ambiente apenas para ir ao banheiro e dormir, na sala imediatamente ao lado.
 
  A luz natural daquele ambiente provinha de uma grande janela situada ao sul, com vistas para o gramado vizinho. Romualdo observava aquela paisagem. Duas crianças brincavam alegremente com o gato do vizinho. Maldito gato. Romualdo odiava aquele animal. Não podia compreender como as pessoas eram capazes de amar um animal preguiçoso, bagunceiro e que solta pêlos por onde passa. Aquele felino era capaz de destruir qualquer organização.
 
  Certa feita, ao retornar do banheiro, deu de cara com o bichano dormindo em cima de seus papéis na mesa do escritório. Berrou com o animal, que, assustado, pulou da mesa, mas não sem espalhar os papéis e anotações por toda a sala. Fora um sacrilégio para Romualdo juntar a papelada. Odiava aquele gato.
 
  O gato, ao contrário, parecia amá-lo, pois seguidamente amanhecia esticado sobre a soleira da janela, tomando sol. Ronronava carinhosamente quando Romualdo se aproximava. O homem, porém, era incapaz de amar o felino. Logo que o alcançava, dava-lhe um bofete para espantá-lo. 
 
  Finalmente deixou a paisagem para dirigir-se à mesa de escritório, localizada no outro lado do imenso salão, quando notou, no chão, uma trilha de formigas que atravessavam o cômodo até um pequeno orifício no rodapé de madeira atrás de sua mesa. Acompanhou a trilha, cuidando para não atropelar nenhuma formiga.
 
  Se algum animal deveria ser admirado, que fossem as formigas, pensava. Eram trabalhadoras incansáveis, como ele fora a vida inteira. Carregavam toda espécie de suprimentos, desde cadáveres de outros insetos até migalhas de alimento, limpando o ambiente. Eram organizadas e elegantes. Capazes de se concentrar num único objetivo, o trabalho. Observava aquela marcha ritmada de pequenos soldados quando alguém tocou a campainha.
 
  Era a empregada. Uma menina de catorze anos incompletos. Romualdo sabia ser ilegal contratar uma menor de idade, mas o fez depois de a mãe da menina, divorciada e com problemas financeiros, implorar que lhe desse uma chance. E fosse o acaso ou não aquela foi a única empregada com quem se entendera. Fazia exatamente o que pedia e não mexericava em suas coisas, como as outras. Por causa de sua timidez extrema, quase não falava, o que agradava muito Romualdo, que detestava conversas fúteis.
 
A menina varria o imenso cômodo quando Romualdo foi até o banheiro. Ao retornar flagrou-a sorridente brincando com o gato em seus braços. Estava na frente da janela e o sol batia contra os dois revelando os pêlos do animal esvoaçando em torno dela e se espalhando pela sala. Irado com a visão, Romualdo gritou:
 
Largue este animal imundo!
 
Assustada a menina deixou o gato cair, que de um pulo encontrou a saída pela janela. Já ela permaneceu ali, petrificada, com os olhos arregalados. Romualdo, passado algum tempo de constrangedor silêncio, pronunciou mansamente algumas palavras.
 
Está tudo bem. É que eu não gosto de gatos. Disse o mais calmamente possível.
 
Era a primeira vez que gritava com ela. Nunca houvera antes uma troca de farpas entre os dois. A menina, toda sem jeito, baixou a cabeça e continuou seus afazeres. Romualdo, no entanto, percebeu que a tinha assustado. Ela limpava o móvel encolhida e cabisbaixa, vez ou outra lançando um olhar de receio. Aquela era a única empregada com quem já se entendera e também a mais barata que já tivera. Se ficasse com medo talvez não voltasse mais. Precisava resolver esta questão.
 
Dirigiu-se até a mesa do escritório. Virou o olhar à janela e viu o gato brincando no gramado. Aquele animal era a razão de toda a confusão. Como gostaria de livrar-se dele! Pensou por alguns instantes no assunto, a ideia se repetindo em sua mente, livrar-se dele, livrar-se dele! Pensou nisso algum tempo até encontrar uma solução.
 
Carla, poderia vir aqui um pouquinho? Falou delicadamente.
 
A menina aproximou-se cautelosa, claramente receosa.
 
Eu preciso de um imenso favor seu. Disse enquanto anotava a palavra “chumbinho” em um pedaço de papel. Você poderia ir até a mercearia aqui da esquina e me trazer o que está escrito aqui? É só entregar o bilhete ao atendente. Diga que é uma encomenda para mim.
 
A menina, tímida como um gato arredio, fez que sim e pegou o papel das mãos de Romualdo, que logo em seguida abriu a gaveta e alcançou-lhe algum dinheiro.
 
Com o dinheiro que sobrar quero que compre algo para você, um doce talvez. É um presente. Disse-o e tentou sorrir, na tentativa de amenizar a situação.
 
O rosto da menina pareceu aliviar-se um pouco. Logo saiu para cumprir a tarefa. Minutos depois, quando retornou, deixou dois embrulhos sobre a mesa, um continha o granulado cinza encomendado e o outro uma rosquinha recheada com creme de leite. Romualdo chamou-a novamente.
 
Mas o doce era para você.
 
Sim, respondeu a menina. Com o troco pude comprar dois, este é seu.
 
Oh, obrigado! Disse meio sem jeito. Aceitou o doce para não cometer nenhuma desfeita, já que parecia ter recuperado a confiança da menina.
 
À noite, logo após sua partida, Romualdo pegou um pedaço da rosquinha e cuidadosamente preencheu o recheio com o veneno. Deixou-o sobre a soleira da janela semi aberta. O restante da rosquinha guardou em seu armarinho.
 
Na manhã seguinte, com a xícara de café numa das mãos, com a outra vasculhava o armarinho em busca de torradas. Não as encontrou, mas esbarrou acidentalmente no que sobrara da rosquinha. Pegou-a e dirigiu-se até à janela. Esquadrinhava o gramado vizinho em busca do cadáver do gato. Não o avistou. Deu uma boa mordida na rosquinha, depois sorveu um grande gole de café.
 
Deu mais uma boa olhada por todo o gramado. Nada. Comeu mais um pedaço da rosquinha e bebeu outro gole de café. Sentiu uma náusea, provavelmente o recheio não lhe caíra bem, já que era bastante doce para o seu paladar. Levantou a xícara mais uma vez para tomar outro gole de café quando viu o gato, vivo, pulando atrás de uma borboleta.
 
Seu olhar foi imediatamente de encontro à soleira da janela, onde depositara a rosquinha envenenada. Restavam apenas farelos. Como era possível? Sentiu uma pontada no estômago. Notou, então, algumas formigas mortas em torno dos farelos. Havia mais delas no chão, várias. Uma trilha de cadáveres que se iniciava ali e seguia pelo salão até o armarinho.
 
Curioso, foi verificar. Quando abriu o armarinho, havia formigas mortas por todo ele. Um terrível pensamento atravessou-lhe a mente. Atordoado abriu rapidamente o pedacinho da rosquinha que ainda tinha nas mãos. O recheio também estava cheio de cadáveres. Apavorado, sentiu ainda suas tripas se contorcerem e em seguida sua visão foi ficando embaçada até a escuridão completa.
 

 
                                                                  
TEMA: Insetos
Total de Palavras: 1166 palavras

 

 

 
  

 

 
DTRL Desafio de Terror Rascunhos Literários
Enviado por DTRL Desafio de Terror Rascunhos Literários em 09/08/2019
Reeditado em 09/08/2019
Código do texto: T6716563
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