As Crônicas do Mundo Negro - O Exército dos Mortos - capítulo III

  - Elisa! Acorde!

  Os olhos da garota se abriram, lentamente, entre piscadelas e uma aparente ressaca de sono. Ainda fraca, tinha as vistas embaçadas.

  Tentou enxergar ao redor, estava em um lugar frio e úmido. Logo o cheiro do mofo adentrou em suas narinas, a menina estava encharcada de suor, deitada por sobre uma espécie de maca de pedra.

 Uma mulher estranha a chamava pelo nome, enquanto Claus e Heitor jaziam á sua direita, sentados em um banco vetusto. As cabeças escoradas uma na outra, ambos imersos em um cochilo, aparentemente exaustos. Nescuro também estava ali, Elisa ficou feliz ao vê-lo bem.

  O cão a olhou e ela sentiu algo intrigante, viu-se segura ao lado dele. O animal continuou deitado no chão, aparentemente curado, e voltou a roer o fêmur de cinqüenta centímetros, um osso humano que já ruía antes de ser surpreso pelo bocejar da garota.

 - Quem é você? – Perguntou Elisa.

 - Madame Maramís – respondeu a velha – Você logo se lembrará de mim menina – Continuou enquanto amassava uma erva estranha em suas mãos,e cuidadosamente passava-a na testa da jovem bruxa, massageando-a.
 
 - O que aconteceu comigo? Algo de repente saiu de minha mão – Elisa gaguejou enquanto as imagens voltavam a sua mente – um tufão de ar, e aí eu simplesmente apaguei – o olhar da garota demonstrava toda a falta de compreensão em que se encontrava.
 
 - Sim. Você ainda não está preparada para suportar seus poderes querida, mas logo se adaptará – a voz da mulher era arranhada, o tom parecia ser um pouco doce, mas havia algo mais – Seus poderes estão voltando. O que acontece é que por enquanto eles estão te dominando, quando o que deve acontecer é exatamente o contrário – ela disse enquanto mostrava um sorriso banguelo, aquela imagem da velha de rosto enrugado e com poucos dentes na boca a fizeram pensar em quantos anos afinal aquela senhora poderia ter... Setenta? Noventa? –Mas o importante é que sua força está aumentando querida – Maramís sorriu.
 
 - Afinal, o que eu sou?

  A velha bateu as mãos uma na outra tirando o resto da erva que ainda jazia em suas palmas. Caminhou pelo lugar, olhou as paredes que a cercavam, havia alguns candelabros e velas acesas, teias de aranha e os insetos que por aquele leve e fino tecido se locomoviam, olhou para a passagem além daquele portal. Como era bom ver tudo aquilo novamente. Voltou-se para a garota e viu que ela ainda era a mesma menina curiosa que um dia havia protegido, que um dia havia segurado nos braços.
 
 - O Senhor das Feras lançou um forte feitiço sobre você e seus pais, vocês vivem renascendo em outra dimensão, num mundo imaginário, num sonho, entretanto algo aconteceu e o feitiço se quebrou – ela disse aquilo e seu semblante mudou, parecia feliz por ver Elisa.
 
 - Meus pais? Eles também são bruxos? – indagou a criança crescida de mil anos.
 
 - Sim. Seus pais são bruxos de segunda linhagem – tentou explicar.
 
 - Então eu sou de terceira linhagem?
 
 - Você é um caso raro, Elisa. É uma bruxa de primeiro grau ou primeira linhagem.
 
 - Não entendi! – A garota parecia impaciente.

 - Os poderes de um bruxo de segunda linhagem não estão dentro dele. São feitiços pronunciados, algo que se aprende através de livros, estudos. Mas você nasceu assim. Se pensar em algo, esse algo simplesmente acontece do nada – Disse a velha, e a forma engraçada com que sua boca movia-se passava algo para Eliza, algo reconfortante, talvez algum sentimento trancafiado no âmago da jovem.
 
 - Mas e o colar? Meu poder não está no colar? – Indagou.
 
 - Este é o colar da Vênus – ela disse apontando para o pescoço da garota – Ele é um receptáculo. É onde o Senhor das Feras aprisionou todo seu poder – ela pausou e voltou a andar rodeando a mesa estranha onde a bruxa permanecia deitada – Vênus é uma deusa romana. Seu símbolo é um pentagrama como esse que há em seu colar. É uma estrela composta por cinco retas, e que possui cinco pontas – a velha lançou um olhar diferente para a menina, um olhar típico de um palestrante – Pentagrama significa uma palavra com cinco letras, assim como o seu nome – Elisa a ouvia tentando absorver cada palavra pronunciada pela mulher – Também é o símbolo do infinito. Muitos definem o pentagrama como símbolo de todo mau, mas não... Não é isso, ele representa os quatro elementos, “água, terra, fogo e ar”, é um talismã – possuí simbologia múltipla sempre fundamentada no número “5”, a união do masculino “3” ao feminino “2”, simbolizando assim a mistura de ambos, o que se entende por andrógino.

  Algo despertava em Elisa a cada gesto, a cada palavra que ouvia, como se lembranças esquecidas brotassem de seu cerne, e sentimentos já conhecidos a abraçassem novamente. A velha continuou:

 - O pentagrama é composto de um pentágono regular e cinco triângulos isósceles côngruos, tal que a razão entre o lado do triângulo e sua base (lado do pentágono) é o número de ouro – ela concluiu.
 
 - Número de ouro? O que isso tem a ver com bruxaria? – Elisa não sabia o que era mais absurdo, se tudo aquilo que acontecera com ela até ali, ou a explicação aparentemente matemática de seus estranhos poderes, além é claro de sua origem mágica.

 - Sim, Elisa, número áureo, mas não confunda as coisas, você não faz bruxarias, e sim magia – ela afirmou enquanto balançava a cabeça – Ele é o número Phi, ou 1,618. Também é chamado por “divina seção”, entre outros nomes – Elisa ouvia a tudo atenta – Pode ser encontrado na proporção das conchas, nos seres humanos, o tamanho das falanges, ossos dos dedos, por exemplo, e nas colméias, dentre inúmeros outros exemplos que envolvem a ordem do crescimento – Maramís enfim tomou ar e então continuou – Mas isto é irrelevante. O que quero dizer é que esse número é mágico! Muitos artistas, estudiosos e pesquisadores procuram entende-lo, mas você Elisa, você tem o poder de controlá-lo – ela falou num tom mais sério que o abordado por ela até ali – Esse número representa toda a magia de toda a natureza, isso quer dizer; tudo que está a sua volta.

 - Puxa! – Elisa estava boquiaberta, um tanto quanto descrente, mas, sobretudo surpresa – Isso é verdade?
 
 - Acredite Elisa, e verá que coisas impossíveis irão acontecer.
 
 - Há muitos como eu? – ela questionou.
 
 - Não Elisa. Apenas você! – afirmou.
 
 - Nossa! – ela estava espantada –E esse Senhor das Feras? – perguntou.
 
 - Ele é de segunda linhagem, mas não subestime seus poderes, menina –

  A voz chegou até os ouvidos da garota, enquanto um vento sombrio parecia a tocar. Gélido e quase paralisante, bem abaixo da nuca, trazendo-a um calafrio – Ele é astuto, sua magia é negra, Elisa. Ele tem um pé neste mundo e outro no mundo inferior – a velha então sussurrou enquanto seus olhos pareciam investigativos, como se temesse que alguém a escutasse, mas não havia ninguém ali – Fez um pacto com o Senhor das Trevas, e sua alma tornou-se imortal, assim como a sua. Só você pode detê-lo. Ele transformou o mundo real no que está vendo agora. Um mundo das trevas. Feras por todo o lado, demônios devastando a vida por todos os quatro cantos. Só você pode fazer o mundo voltar a ser como antes. Você criou os monstros Elisa. Criou eles para proteger o mundo, contra os demônios invocados pelo Senhor das Feras, mas ele te enganou e após te enfeitiçar, fez o mesmo com os monstros que passaram a obedecê-lo. Nescuro foi o único que se manteve fiel. Os rottweilers são uma das raças mais antigas de cães, na antiga Roma ele era criado como um cão de guarda e boiadeiro, em 1910 foi reconhecido como cão policial, altamente indicado como cão de companhia. Nescuro foi um presente de seu pai, ele te acompanha desde seus primeiros três anos de idade, Elisa.
 
 - Nescuro... Eu sei que ele é muito especial para mim, mas não me lembro dessas coisas.
 
 - Mas se lembrará.
 
 - Nossa, vocês falam alto hein? – se queixou Heitor, acordando.

 - Heitor! – Disse Elisa.
 
 - Que bom que está bem rainha – ele disse entusiasmado.
 
 - Não me chame assim. Por favor seu elfo louco – ela disse, sem perceber o que falara.

 - Elfo louco? Você me chamou de elfo louco! – Disse Heitor, sorrindo.
 
 - Desculpe. Eu...
 
 - Era assim que sempre me chamava. Você se lembrou! – ele parecia eufórico.
 
 - É... Lembrei-me disso né – disse ela tentando lembrar-se de mais alguma coisa, mas não conseguia. Tudo acontecia espontaneamente.
 
 - E você Claus, como está? – Perguntou Elisa, desconversando.
 
 - Bem, mas precisamos ir – respondeu secamente, Claus parecia preocupado.
 
 - Sim, eu sei – ela respondeu – Nescuro, levante-se e largue esse osso logo – ordenou e viu o cachorro obedecê-la prontamente.
 
 - Ele brinca com esse osso há anos Elisa, desde que você partiu – Disse Madame Maramís.
 
 - E você quem é afinal? – Perguntou a garota, enquanto olhava a intrigante mulher a sua frente. Uma velhinha corcunda e banguela, que de algum modo a passava algo muito bom.

 - Sou sua avó, querida – revelou – Vá agora, e me de um abraço apenas quando se lembrar de mim – a mulher sorriu, timidamente e viu a reação de Elisa, que se virou chocada.

  A garota não teve forças para abraçar a mulher, toda sua vida havia sido uma invenção, um maldito feitiço que apagara toda sua memória. Afinal, tudo aquilo era verdade? Para sua própria surpresa, Elisa começava a acreditar que sim.
 
  Eles saíram dali, Elisa olhando para trás, completamente sem graça. Viu a imagem da velha senhora deitando-se na mesa de pedra, e pareceu se assustar com o que viu a seguir – de repente a pele da mulher definhou-se até transformar-se em areia, e por fim restaram apenas ossos.
 
 - O que aconteceu? – ela perguntou.
 
 - Você saiu de lá Elisa. É assim que funciona. Sua avó não é imortal, mas seus poderes podem trazê-la de volta enquanto estiver por perto – Disse Claus – Eles saíram e Elisa se viu no meio de um enorme cemitério.
 
 - Nós estávamos no tumulo dela? – indagou, perplexa.
 
 - Sim. Pode se dizer que era um tumulo, querida. Vamos? – disse Claus, olhando-a de maneira repreensiva.

  Ela o seguiu, carregando um olhar melancólico. Eles continuaram andando, até que abruptamente as orelhas de Nescuro se ergueram e o cão começou a rosnar.
 
 - O que foi rapaz? – Perguntou Heitor empunhando seu arco e flecha. Elisa olhava em sua volta, mas não via nada. A terra de repente começou a tremer. Uma neblina densa começou a surgir dos poros da terra. Mãos começaram a sair de dentro das sepulturas, ossos de esqueletos ganhavam vida.

  Uma das mãos cadavéricas agarrou os pés de Elisa. Nescuro abocanhou a mão que a segurava e puxou jogando-a para longe. Várias outras surgiam, centenas delas. Caveiras se ergueram no breu daquele mórbido ambiente. Tinham os olhos vermelhos e gemiam enquanto iam em direção deles, carregando escudos e espadas medievais.
 
 - Corram! – gritou Claus.
 
  Eles começaram a correr. Heitor atirava suas flechas, mas eles os cercavam por todos os lados. As flechas acabariam logo.
 
 - Use o colar, Elisa! – advertiu Heitor.
 
 - Estou tentando...mas... Foi quando um enorme dragão apareceu na imensidão da noite. Um homem esqueleto montado em seu pescoço.
 
 - É o general! – Disse Claus.
 
 - General? – Perguntou Elisa.
 
 - Enéias! – Respondeu Heitor.
 
  O dragão pousou próximo a eles, a criatura devia ter de doze á quinze metros de comprimento, era absurdamente estranha, possuía faces esparramadas pelo corpo, faces literalmente medonhas, que se moviam a todo tempo, olhos e bocas por toda parte, algo realmente bizarro. Tinha três caldas ao invés de uma, apenas uma cabeça, mas três olhos no meio dela, e os dentes eram pontiagudos. Enéias desceu do dragão.
 
 - Olá Heitor – a voz chegou sarcasticamente aos ouvidos do elfo – Vejo que trouxe a Rainha até mim – disse o guerreiro esqueleto, enquanto os olhos vazios miravam na jovem. Era fácil sentir a maldade que aquele monte de ossos possuía, Elisa podia perceber os sentimentos de ódio que emanavam daquele ser.
 
 - Não mesmo, Enéias! Você não vai pega-la – disse Heitor.
 
 - Sem os poderes dela vocês não são páreos para meu exército, idiotas – disse em meio a seu sarcasmo.
 
 - Isso é o que veremos – retrucou Claus empunhando sua espada.
 
 - Branquelo idiota – ironizou – E essas orelhas ridículas, Heitor? Acha melhor ficar assim, ser um elfo? – Enéias riu debochadamente.
 
 - Melhor do que ser um bando de ossos meu caro – Nescuro ainda latia para criatura a sua frente. O Dragão fitava o cão com os olhos, os três olhos.  Elisa permanecia assustada. O exército os havia encurralado.
 
 - Por que você mudou de lado, Enéias? – perguntou Heitor.
 
 - Por quê? Bem, por que cansei de ser o segundo melhor – Disse, erguendo sua espada e partindo em direção de Heitor, e então bradou – Matem todos!!!
 
  O dragão avançou para cima de Nescuro, que ainda estava na forma de um cão normal. A calda da criatura bateu contra o corpo do cão e o jogou dez metros a frente. Claus tentava proteger Elisa, mas o exército os atacou sem piedade. Noutro canto da batalha, faíscas surgiam em meio á densa névoa, as espadas de Heitor e Enéias se encontravam no ar.
 
 - Elisa, vamos morrer aqui se não usar seus poderes! – disse Claus.
 
 - Eu não estou conseguindo! Eu não posso! – Ela então se lembrou de sua avó. Do que ela havia lhe falado. “Acredite Elisa e verá que coisas impossíveis irão acontecer” Foi quando Claus caiu no chão, uma espada acabara de atingi-lo, Heitor olhou para ele. O peito do albino estava sangrando e os esqueletos caminhavam na direção de Elisa, SUS bocas escancaradas, os dentes num misto de poeira e osso, não havia carne, não havia línguas, era um bando de guerreiros amaldiçoados, controlados por um poder maléfico.

 O Dragão abriu a boca e preparou-se para incinerar, Nescuro e naquele instante o colar brilhou.
 
 - Nãoooooo!!! – Gritou Enéias investindo com toda sua força, a espada cortou o ar, indo de encontro a Heitor.
 
  Nescuro agora estava em sua forma de monstro, mas ainda na mira do dragão. Elisa virou-se para o dragão e apontou a palma de sua mão na direção dele. O fogo saiu da boca do demônio, ia direto para Nescuro. O cão deu um salto, e depois correu. Era perseguido pelas chamas, que a cada milésimo de segundos o ameaçava ainda mais, até que algo impossível aconteceu.

  Da mão de Elisa um tsunami de água saiu, e confrontou-se com as labaredas do demônio. Era uma força incrível que as empurrou de volta a garganta da fera. A criatura sentiu o fogo regredir, tomar caminho inverso e entrar queimando seu interior. O dragão engoliu aquelas chamas bisonhamente, as faces que circundavam aquele corpo grotesco e gigante transformaram-se repentinamente em bolhas bizarras, até que o ser implodiu, findando-se em partículas gosmentas que se espalharam pelos corpos que ali estavam.

  As cobras do colar de Elisa se remexiam. A menina sentia-se repleta de poder. Apontou sua outra mão para o chão, como se soubesse o que estava sabendo. Um barulho ensurdecedor foi ouvido. Era o som de rochas deslocando-se em algum ponto dali, a terra começou a ruir-se e logo o chão estava repleto de fendas que tragavam os esqueletos para o subsolo.

  Eles abriram suas bocas e se agarraram as lapides, mas não restou nada. A ultima coisa que se ouviu foi a voz de Enéias, dizendo:
 
 - Nos encontraremos logo, Heitor... O mestre me dará outra chance e não falharei novamente – Ele dizia ao mesmo tempo em que dava uma gargalhada maquiavélica e por fim desapareceu completamente, enquanto as fendas se fechavam atrás deles.


Episódios anteriores

Leia o Capítulo I - A Jovem Bruxa e Colar Misterioso

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Leia o Capítulo II - Conhecendo seus Poderes

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Continua...

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Sidney Muniz
Enviado por Sidney Muniz em 07/02/2013
Reeditado em 09/02/2013
Código do texto: T4127964
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