Sonho de Cão

(Maria Santino)
 
Os ganidos e rosnados provocadores vindos da pequena arena, aumentavam à medida que os homens se chegavam mais e mais, debruçando-se naquele cercado de arame, gritando e agitando os punhos no calor excruciante do meio-dia. O barulho colaborava para incitar a fúria nos dois seres, que se estudavam (em trégua) eriçando os pelos do dorso e mantendo o olhar fito de maneira hipnótica. De um lado o vigoroso Pompeu com seus olhos ferinos cor de garapa, expunha os caninos em sua bocarra salivante para o outro, Loki, que baixava a cabeça sem retirar os dois globos castanhos e igualmente ferozes de cima do oponente, afastando as patas prestes a arremeter.
 
A baba caía no chão que rapidamente absorvia o líquido grosso provindo das duas espécies: cães e homens.
 
O caboclo metido a valente e irritadiço, dono de Pompeu o pitbull, lançou uma pedrada no animal a fim de encurtar aquela demora, pois os espectadores queriam aquilo pelo que pagaram: confronto, peleja... sangue. No entanto, tal ato desviou por um instante a atenção do cão o suficiente para que o rottweiler atacasse. As duas feras novamente rolaram coléricas sobre o solo levantando poeira e fazendo crescer o alvoroço e satisfação dos homens. A cerca tremia convulsiva e seus rangidos somavam aos sons provocados pelos animais que mordiam selvagens as carnes um do outro, mordiam o vento e a si mesmos, alternando rapidamente de posicionamento no combate.
                      
Para que o prazer aumentasse, baldes de água gelada eram lançados na rinha, fazendo os cães suspenderem o duelo e serem contidos pelos donos que esperavam novamente o dinheiro ser somado.
 
“Façam suas apostas!” “Façam suas apostas!”
 
Pompeu, zonzo, bufava e engolia comprido a saliva saguinolenta ao mesmo tempo em que o líquido rubro também escorria pelo seu focinho curto. Os raios de sol eram refletidos nos fluídos dos ferimentos sob seu pelo marrom, que escondia as cicatrizes do longo tempo de árduo treinamento. Loki, por sua vez, permanecia cerrando os dentes e balançando a cabeça repetitivamente expondo a orelha que só se mantinha presa por um fio de carne. O dono nada dizia, apenas observava de modo jocoso, o caboclo a sua frente, abanando a cabeça ao ver o cão adversário claramente combalido. Tal ato era o suficiente para atiçar a ira do outro, fazendo-o tatear a arma que trazia na cintura.
 
Os animais, adestrados para ser o fruto de deleite dos homens, voltaram mais uma vez ao combate, e os ganidos (quase uivos) ressurgiram da mesma forma que seus corpos outra vez rodopiaram escavando o solo. Em questão de segundos, a orelha do rottweiler agitou-se no ar caindo fora da rinha, mas este já sustentava o pitbull, imóvel no chão sob seu corpo, e segurava a pressão dos dentes cerrados no pescoço dele, que gania queixoso abrindo e fechando a boca como um peixe que deseja o oxigênio.
 
BANG!
 
Por alguns instantes o tempo parou e nem o vento ousou mexer nas folhas das árvores, os poucos pássaros empoleirados por ali levantaram vôo, assustados.  O som do tiro impôs silêncio fazendo às atenções se voltarem para o caboclo que empunhava cheio de ódio, o revolver 38.
 
“Bicho meu só me serve enquanto ganha!”
 
A voz rude do caboclo, chispando os lábios com fúria, vibrava e a arma exibia uma linha de fumaça pelo cano, ziguezagueando como um pequeno espectro. A tensão se condensava e ele não disfarçava o olhar desafiador para o dono de Loki, que não aceitava a provocação limitando-se em retirar o rottweiler da rinha, partindo em seguida após receber o pagamento. No entorno, somente murmúrios eram ouvidos enquanto os homens aos poucos debandavam ao perceber que não haveria mais qualquer outra disputa. Seguiam com expressões dentre alegria, tristeza e raiva,  não pelo cão recém alvejado, mas pelo dinheiro rolado.

Pompeu, viscoso de sangue, foi atirado de modo displicente na caçamba da caminhonete e o caboclo apanhou a garrafa da “caninha”, que estava aninhada no banco do passageiro, tomando dois sorvos rápidos antes de pisar no acelerador.
 
No lugar do combate, silêncio e vazio imperavam.
 
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As rodas do veículo devoravam o estirão negro de asfalto, a cada pedaço de chão o caboclo acelerava mais fundo sem atentar para as manobras nada coesas que fazia. Os raios de sol queimavam a sua retina e deixava o rosto mais lustroso ainda de suor, a bebida descia rasgando na garanta que não cansava de proferir um rico vocabulário de palavras chulas. Pensava nas dívidas crescentes, na cobrança da esposa (que certamente resultaria em agressões físicas) e, sobretudo, no olhar de deboche lançado pelo criador de rottweiler. Este último o fazia sentir que seu orgulho de homem fora ferido. Sentia também frustração ao lembrar-se do tempo que levara treinando o cão, nas mordidas que suportou e no quanto teve que bater naquele animal até que aprendesse a ser o reflexo da selvageria.
 
O pensamento seguia mergulhado na tensão e no álcool, e o carro dançava imprudente na estrada sinuosa. Em dado momento o veículo trespassou a mureta que delimitava um declive, como se esta fosse uma fina cortina, e o caboclo e seu cão rolaram em alta velocidade sendo engolidos por um lago profundo no fim da ladeira.
 
********
 
Era madrugada alta e chuvosa quando um corpo emergiu das águas. Ele alcançou a margem de modo sofrível e caminhou vacilante sentindo-se pesado como chumbo. Tudo era dor e confusão, fazendo-o seguir, quase que por instinto, no rumo de casa. Não demorou muito para avistar a porta do seu casebre de largo quintal, onde os desmanche clandestino de veículos tomava um bom pedaço da área. Os cães remanescentes (em sua maioria filhotes) vieram recebê-lo e ele se demorou os estudando e percebendo que nenhum deles era tão bom quanto Pompeu. Logo abriu a boca e gritou algo para que os bichos o deixassem em paz. A voz soou rouca, animalesca. Tossiu e rumou para dentro imaginando se valer de algum comprimido antes de cair na cama.
 
No quarto a mulher dormia, e como não queria acordá-la, nada fez além de deitar e adormecer quase que instantaneamente.  Jamais tivera um sonho tão estranho, primeiro viu a mulher tratá-lo de maneira grosseira, como se ele fosse um qualquer, mas no momento em que ia “colocá-la em seu devido lugar”, teve que se esconder embaixo da cama ouvindo palavras desencontradas e ameaças daqueles a quem devia uma alta quantia em dinheiro. Quando tudo ficou em silêncio, resolveu tomar providências e ensinar a esposa a respeitá-lo, mas ficou aturdido ao encontrá-la chorosa na sala, abraçada aquele criador de rottweiler. O peito disparou e sua voz não saiu pela garganta inchada, sentia-se afrontado com aquela visita insolente e, sobretudo, com aquele afago em sua esposa, ali, diante dele. Rapidamente partiu na direção ao homem que o observava misterioso, porém recebeu uma pancada seguida de outra, indo de encontro ao chão.
 
Quando despertou estava caído no quintal de uma casa. Estranhou, mas preferiu acreditar que, na verdade, ainda dormia, pois se assim não fosse, como poderia explicar a coleira presa em seu pescoço e a visão debilmente colorida. Deixou se levar pela sensação nova da condição também nova e farejou o ar expondo os dentes e rosnando em seguida ao notar a mudança brusca de odor, olhava as patas e sentia o calor que brotava do solo tão próximo do seu ventre, admirando o realismo de tudo que experimentava.
 
Novamente a imagem daquele homem surgia dizendo palavras imperativas para ele, que sem pensar duas vezes, atacava saltando com a boca aberta mirando o pescoço do sujeito. Mas ele não contava que o outro, precavido, trazia consigo um pedaço de ripa, o qual desceu impiedoso sobre sua cabeça fazendo-o gritar de forma absurda, não humana. Em sua teimosia arremeteu mais uma vez, e da mesma forma, ou ainda mais forte, foi ferido sentindo o sangue embaçar a vista. Não entendia como podia sentir tanta dor, cansaço e por que não acordava de vez daquele sonho insólito e humilhante.

A peleja perdurou por mais algum tempo, até que uma sequencia chutes o deixou estirado esturrando alto sobre o solo arenoso. Os olhos se ergueram uma vez ainda e o homem o ameaçou mostrando a ripa e despejando cheio de si.
 
“Chega? Quer mais? Tu tem que obedecer a mim, viu? A mim! Teu dono agora sou eu. Ou isso, ou desconto o que paguei pra viúva te dando um tiro certeiro desta vez.”
 
A raiva cedeu espaço a surpresa daquela revelação, a pupila contraiu na retina cor de garapa e tremores epiléticos de medo tomaram conta dele ao mesmo tempo em que inúmeros pensamentos embaralharam sua razão. O pedaço de ripa, de novo, foi mostrado seguido de outra ordem ríspida. De quatro, com a cauda curvada para o meio das pernas junto com o quadril, submisso, ele buscou o abrigo sob um escombro qualquer e deitou a cabeça entre as patas. Frases que caiam em seus ouvidos revelavam a disputa canina que logo teria que enfrentar.  

Explicações sobrenaturais jamais satisfariam o que houve ali, mas, naquele momento, tudo o que ele queria era fechar os olhos e sonhar com o tempo em que era humano.
 

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Contadores de Histórias
Enviado por Contadores de Histórias em 22/08/2014
Reeditado em 17/09/2014
Código do texto: T4932433
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