O Mistério da Bruma Verde

(Eliane Verica) 
 
 “Tudo o que vemos ou parecemos não passa
de um sonho dentro de um sonho”
Edgar Allan Poe
 
A porta da velha casa se abria lentamente, seus pés descalços tocavam o chão coberto por folhas secas, sangue e ossos humanos. Ela era gigante, monstruosamente imensa, tocava as nuvens acinzentadas que cobriam a noite parcialmente escura; somente a luz vinda de dentro, iluminava o breu das trevas, e minúsculo, o homem se aproximava lentamente da porta entreaberta, porém quanto mais perto chegava... Menor ela se tornava, diminuía gradualmente até se tornar um ponto de luz, por onde um grito de angústia parecia se espremer abandonando o pobre homem na escuridão desesperadora da solidão.

 
...

Abriu os olhos e fitou o teto, ainda era madrugada, mas ele precisava caminhar. Fazia tempo que nada era tão grande quanto o vazio dentro de seu peito... Dentro da sua alma.

O vento era uma brisa morna, na manhã ainda escura, o homem de aparência pouco saudável, costas curvadas e feições pálidas, desceu a ladeira a passos largos depositando em cada poste um cartaz de desaparecido ainda sob a sombra do alvorecer. Sobre as sobras dos cartazes antigos que ele mesmo colara, grudava outros idênticos, a mesma foto, as mesmas palavras, a mesma busca que ele já havia esquecido quando começou, entretanto, ele persistia.
Estava obstinado a encontrá-lo.

Encarava o rosto pálido da foto em preto e branco, e não conseguia se lembrar de ser tão parecido fisicamente com seu irmão – já fazia tanto tempo. Sua memória estava, mesmo, falhando. Nesse dia, entre tantos, havia algo a sua espera... Algo realmente grande. Ao adentrar as vielas escuras, notou algo estranho, inesperado; uma casa... Onde antes era apenas um terreno baldio – e ele tinha certeza disso, sempre passava pelo local – entretanto, ela parecia estar ali há séculos. Sua memória não estava boa. Era de madeira velha com as paredes inclinadas, em ruínas, sua porta entreaberta batia como se vento a tivesse impulsionando, mas o ar estava parado. Uma árvore completamente seca rangia seus galhos ao lado da construção monstruosa. E o mais impressionante de tudo para o homem sofredor; uma fumaça tão densa como água saia de uma pequena chaminé e se derramava em direção ao céu, algo diferente de tudo que ele já tinha visto, tingindo o céu acima de uma coloração verde profundo, que refletia os primeiros raios de sol.

Era tão insólita aquela situação que o homem não teve tempo para tentar processar o que estava vendo, julgou indecifrável e duro como era, inquebrável em suas crenças, achou difícil encarar aquela realidade sobrenatural, então ele fez o que a maioria faria em seu lugar... Apenas seguiu o seu caminho distribuindo os mesmos cartazes inúteis de décadas.

Porém naquela noite algo brotou dentro da mente fechada do homem, soube que não poderia dormir se não resolvesse o problema que o atormentava. Decidiu que precisava ir até a casa novamente. Levantou no meio da noite, como por impulso, passou a mão na pilha de cartazes sobre a mesa e levou consigo para a densa escuridão da madrugada. Eram mais de três horas quando se deparou com a viela estreita, uma fina garoa refletia a luz artificial dos postes, e escorria como lágrimas no rosto do homem. Ele seguiu seguro rumo ao seu objetivo, tinha o pressentimento que encontraria o que tanto procurava, entretanto ao dobrar a esquina, viu algo que o deixou mais confuso que satisfeito... A casa havia desaparecido - inexplicavelmente desaparecido - não tinha sequer vestígios de que algum dia existiu. A árvore estava lá, seca e soberana, e um vento frio varria as folhas junto com alguns de seus velhos cartazes.

O homem confuso, fez a única coisa que sabia fazer, voltou colando seus cartazes madrugada adentro. Porém já não tinha certeza que um dia tivera um irmão, e seus sonhos o perturbava, não o deixava dormir.

 
...

Caminhando a beira da rodovia na madrugada escura, iluminada apenas pelos faróis dos carros em alta velocidade o homem pensava como é difícil ser completamente original... Escrever algo que ninguém jamais escreveu, uma história totalmente inédita - não é só difícil, é impossível. Toda história é nada mais, nada menos que fragmentos de coisas já pensadas, situações vividas ou imaginadas por alguém, não existe nada que ainda não foi dito, pensado e devidamente registrado em algum lugar.

Fazia isso quando sentia uma coisa estranha no fundo de sua mente e quando sonhos estranhos o incomodava, ao contrário do irmão, era um homem aparentemente feliz e sociável, dizem que é assim mesmo... Um gêmeo é o oposto do outro. Toda manhã descia a ladeira apressado, o sol ainda não brotara no horizonte e ele já saia para o trabalho, o caminho era longo três horas sacolejando no ônibus, para chegar à empresa de peças de automóvel em que trabalhava há dois anos, conhecia bem o caminho... As residências, as árvores, as ruas, tudo lhe era muito familiar, porém naquela manhã algo o surpreendeu... Uma fumaça carregada e esverdeada como um líquido escorrendo em direção ao céu.

 A casa era de madeira muito antiga, parecia gemer enquanto rangia ainda sob a escuridão da madrugada. Ele aproximou-se do portão e naquele instante teve uma vaga impressão de que já tinha visto aquele lugar antes – sim, nas profundezas de seu subconsciente ele já havia estado ali, em seus sonhos talvez. As mãos encostadas na cerca de madeira o levaram para devaneios de histórias futuras e sem que ele percebesse seus lábios se movimentaram e palavras desconhecidas saíram de sua boca. Não fazia o menor sentido, mas ele sentiu-se atraído pela casa, como se algo o puxasse para dentro. Um vento forte o abateu carregando consigo as folhas e um destino incerto... E a despeito do medo que agora o invadia os sentidos o homem seguiu em frente.

Há mais ou menos dois metros de distancia viu a porta se abrir como um convite para que adentrasse, uma luz fraca saia de dentro e impedia que ele visse o que o aguardava, e como se estivesse em transe ele aceitou o chamado.

No momento em que seus pés tocaram o chão batido ele soube, dentro de sua cabeça, que estava condenado. A porta bateu atrás de si, o trancando na escuridão, há essa hora já não cabia à desistência, afinal, talvez seja isso que seus sonhos lhe sussurravam nos ouvidos, talvez ali estivesse cuidadosamente depositada sua majestosa ideia.

A casa pouco iluminada gemia a cada passo do homem, e ele seguia ruminando a excitação e o silêncio absoluto. Frente à porta em que uma claridade verde misteriosa penetrava pelas frestas ele parou e hesitou por um momento, sentia um cheiro acre, que lhe picava a língua como agulhas, e uma sensação de que deveria entrar. A maçaneta emperrada frustrou a sua curiosidade e o fez tremer... Teve a impressão que seus pesadelos vieram para atormentá-lo e com a sanidade ferida, bateu o corpo contra a porta de madeira apodrecida que se partiu ao meio.

Dentro do quarto o ar era pesado, o escuro era quase total, apenas uma luminosidade fraca. Ele aproximou-se da luz, sentiu o chão mover-se embaixo dos pés, era macio e irregular, movimentava-se como um colchão d’água.  Ele tentava, com muito esforço, se equilibrar sobre as pernas, a luz estava próxima, era uma esmeralda brilhante exalando uma fumaça, impressionantemente maravilhosa. Quase podia tocá-la... Era como uma galáxia reluzente, transcendente, penetrando por todas as células de seu corpo.

E seu deslumbre foi interrompido por um solavanco...

O chão começou a afundar e para seu desespero absoluto percebeu seu erro, estava dentro da boca de uma criatura monstruosa, e antes que o homem pudesse pensar, a coisa fechou suas varias fileiras de dentes pontiagudos em seu frágil corpo.  Não houve grito que o salvasse, não houve como fugir, era como uma planta carnívora sugando a vitalidade de um inseto... Apenas um inseto que caiu em sua armadilha.

...

Naquelas redondezas nunca houve alguém que tenha conhecido os irmãos gêmeos, mas ouviam rumores, da boca de um louco, de que uma casa velha aparece e desaparece sob uma nuvem esverdeada, ela surge apenas uma vez para cada pessoa, e quem ousa entrar para desvendar seus mistérios, jamais retorna.
 
 

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Contadores de Histórias
Enviado por Contadores de Histórias em 28/08/2014
Reeditado em 17/09/2014
Código do texto: T4939814
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