A CAÇA
 
 
Aquela hora chega novamente. Sentado em minha moto, bebericando os últimos goles de uísque existentes no meu cantil (álcool é o único que convence meus ossos desgastados a fazer o que deve ser feito em noites como esta), observo a neve cair precisa como uma rajada de balas no meu amigo, os flocos brilhando incandescentes pela luz do aparelho que ele segura na mão avidamente.

O uísque fervilha em meu estômago quando Hank vira-se para mim com sua cara infestada de uma expressão maníaca e diz
‘‘Parece que temos mais um Jax. ’’

‘‘Então vamos chapa. ’’

Dou um ultimo gole e partimos.

Odeio esse trabalho, e cada pedacinho infernal dele. Desde o rugido da moto velha fazendo minha arma especial agitar-se como um animal raivoso pronto para estraçalhar a carne da caça. Até o olhar dos espectadores no fim trabalho. Cruéis, satisfeitos, penosos, ácidos, curiosos, maravilhados; todos banhados em chamas verdes.

Já estou acostumado com isso, no entanto. Ódio não é novidade para ninguém, nem para nós humanos, nem para os alienígenas. Esse povo estranho vindo do Lá Fora, que desejou infiltrar-se em nosso planeta, como ratos de esgoto que sobem da escuridão para a luz. Rastejaram entre nós, escorrendo pela humanidade até serem vistos, até serem repudiados por nós, caçados, examinados, e por fim (e o mais recente) aniquilados. É isso o que faço, eu os caço, (e o mais recente) os aniquilo. Não por ódio, meu ódio é apenas uma dor envelhecida agora, que foi apagando-se nas águas desgastantes do tempo. Afinal, um homem tem que pagar seu próprio uísque, mesmo que ele fique amargo demais em certas noites.

Estávamos indo para uma floresta de pinheiros, que vestia uma imensa colina com pontas negras e brancas. Hank e eu embrenhamo-nos pelas árvores.

‘‘Como estes merdas ainda arrumam lugares para se esconder? Uma merda de casa, numa merda de colina, vou matar esse com gosto. ’’ Hank esbraveja quando quase bate em uma árvore.

Ele sempre mata com gosto. Rindo e atirando, como se fosse uma festa.

Á madruga já fincou a noite a tempos. Faz muitos meses que não caçamos tão tarde, e estamos um pouco cansados. Apenas o uísque nas veias funcionando como combustível.

A decadência da nossa profissão não oferece walkie-talkies.
‘‘Calma Hank, é só um dessa vez. ’’  Grito para ele entre as rajadas de vento.

 Ouço-o bufar e desviar de outro pinheiro. Chegamos a uma pequena clareira poucos minutos depois. As motos ficaram na floresta, só a alguns metros da clareira.

Andamos até uma casa de madeira relativamente extensa, tanto abandonada, quanto melancólica. A neve já perdera a selvageria, e agora caia em poucos flocos lentos. A casa se fazia presente no escuro. Nenhuma luz nascia dela.

‘‘Parece que não tem ninguém lá dentro Jax. ’’Hank denunciou o que eu já tinha suposto.

As únicas coisas que iluminavam o nosso caminho eram as lanternas acopladas em nossas armas; a lua era inútil, e a neve servia apenas para ofuscar a visão. Paramos na porta da casa. No mínimo trinta centímetros de neve engolia a base da porta de madeira.

‘‘Sem tapete de boas-vindas aparentemente. ’’ Hank ri da própria piada.

Olho em volta. Pinheiros cercavam-nos em círculos. Sem corujas. Sem lobos. Sem espectadores. O ar imbróglio preenchendo o vazio.

‘‘Sem pessoas para o show também. ’’ Falo sem conotação humorística, fazendo Hank parar de rir e deixar seu semblante mais impaciente e vazio.

Tiro o rastreador de alienígenas do bolso falso do casaco. Hank estica o pescoço para ver o que a tela mostra. Três pontos vermelhos (Eu/Hank/humano desconhecido próximo possivelmente dentro da casa) e um azul (alienígena também dentro da casa), um dos pontos vermelhos ao lado do ponto azul. A tela chuvisca e se apaga diversas vezes, demoramos a identificar os pontos.

‘‘Não me diga que essa merda também estragou? Como essa merda de governo quer que a gente cace os alienígenas se nos dão merdas de rastreadores que não aquentam uma porrada?’’ Hank reclama raivoso, a tela se apaga com um risco verde decretando a morte do aparelho, e isso arranca mais uma ode de raiva de Hank.

‘‘Cala a boca! Pelo menos sabemos que o alienígena foi burro o suficiente para ficar parado no mesmo lugar. ’’

Não seguimos o protocolo, escancaramos a porta de uma vez com dois chutes harmoniosos e entramos na casa sem nos anunciarmos antes. Tudo lá dentro era comum. Mobília lustrosa cheias de cacarecos por cima, um sofá simples de fronte a uma televisão de tubo.

Passamos pela sala de estar e pela de jantar. Hank olha debaixo da mesa. O rastreador mostrou que os dois pontos suspeitos estavam mais atrás da casa um pouco antes de estragar. Atrás da casa se resumia a dois quartos, ambos com portas idênticas não muito distantes uma da outra.

Hank vistoriou a cozinha, eu simplesmente encarei as portas, minha respiração também era fumaça esbranquiçada aqui dentro, não ouvi nem vi outra sem ser a minha e a de Hank.

‘‘Só podem estar aqui. Não existe outro lugar para estarem. ’’ Hank fala baixo quando para ao meu lado.

As maçanetas são douradas. Foscas. Mas ainda conseguem ser mais brilhantes do que qualquer outra coisa da casa. E em minhas mãos são frias como estrelas. Hank entra no quarto da direita e eu no da esquerda. O piso range contra o meu coturno e meu corpo fica tenso.

Aquele era um quarto de criança. Um minúsculo esqueleto de cama jazia sem colchão ou travesseiro na parede oposta a mim. Um armário puído ao lado de uma janela semiaberta era o único móvel restante do quarto. Ando exatos três passos e lanço a luz da lanterna nele.

A tinta azul está lascada e têm três fotos coladas com fita espalhadas nas portas duplas do armário.

A primeira foto é de um casal sorrindo para a câmera, a mulher tem uma criança pequena na no colo. O rosto da criança tinha sido riscado violentamente. Tinha uma frase escrita embaixo da foto. ‘‘A família mais linda do mundo!’’
 A segunda foto mostra o casal sozinho, também sorrindo. Ela está com um vestido branco e ele de terno preto. Uma das palavras tinha sido riscada. ‘‘Parabéns e muitas felicidades aos dois!’’

A terceira estava um pouco embaçada, mas consegui identificar o mesmo homem, a qual agora segurava um bebê com rosto rabugento. ‘‘Bem-vindo ao mundo pequeno!’’ A frase inteira riscada fracamente.

Aquelas foram às únicas fotos que vi na casa inteira. E elas tremeram e gritaram junto com a casa inteira. Duas armas dispararam.

Vi-me caído no chão empoeirado. Agachado mais exatamente. Empunhei minha arma na direção do som atordoante. Ela era como uma submetralhadora, que disparava algo parecido com raios ao invés de balas comuns.

O que eu encarei e mirei foi uma rachadura circular. A madeira deslocou-se para fora em pequenas farpas. Sangue escorria entre elas.

O que Hank fez?

Saio do quarto e corro até o outro.

Hank estava encostado na cama. Segurava o ombro esquerdo com a mão rubra de sangue. A sua frente, outro armário, com um morto dentro, um homem adulto, sem cabeça.

‘‘Esse merda me deu um tiro, ai!’’ Geme de dor ‘‘Ele estava se escondendo com o alienígena nessa merda de armário. Pelo menos eu revidei’’ sorri perverso para o corpo ‘‘O alienígena fugiu, mas o acertei na perna um pouco antes de sair pela janela. Vá atrás dele logo!’’

Uma perna fina e pequena de tom esverdeado estava abaixo da janela, ambas sujas do característico sangue negro.

‘‘Queime o corpo do humano e me espere. ’’

Ordeno a Hank e não aguardo resposta. A neve amortece minha aterrisagem. Há um rastro que leva até floresta absorve a luz de minha lanterna. O sangue denso faz um caminho serpenteado da clareira até á floresta. Ele ainda foi longe.

Corro no caminho denominado pelo próprio fugitivo. As árvores a minha volta parecem humanos. Esguios. Envoltos nas trevas. Rindo disso tudo. Ouço algo parecido com uma respiração exausta. Não vem das árvores, vem do final da trilha. Chegamos longe. Nós dois.

Devia ser um cemitério. Ao menos parecia ser um. Os pinheiros desviavam das duas únicas lapides em formato de cruz, como se soubessem que não deviam intervir no lugar. Eram irregulares entre si, mesmo estando lado a lado. As cruzes, uma era pequena e mais desgastada, a outra era imponente e menos judiada pelo tempo. Porém, ambas foram escavadas para não serem afogadas pela neve.

Não me importo com o som dos meus passos na neve. O alienígena está de costas para mim. Sentado em frente as lápides, o ferimento da perna amputada jorrando sangue. Aproximo-me.

O ET está trajado de uma camisola feminina aparentemente. O tecido é fino. Consigo ver a pele verde dos ombros por trás da má proteção. O pequeno corpo treme. Instável e chacoalhando. Penso no medo da morte. Talvez ela esteja sentindo isso.

‘‘Cruzes. Sempre. Haverá. ’’

A maioria deles não sabe falar qualquer tipo de língua terrena. Seus gritos e berros são desconhecidos para mim. Sempre altos demais. Furiosos demais. Não os culpo. Viver e morrer, no meu trabalho são coisas igualmente dolorosas.

Corto o espaço restante entre nós. Vejo-me parado atrás do ET. Eu, de pé. Ele, sentado. Minha lanterna o ilumina. O bico de minha arma perto da cabeça careca do estranho.

‘‘Faça. ’’

E faço.

Mato o monstro que amedronta os adultos, aflige o governo, mostra outros mundos as crianças. E tira mais um pouco da minha humanidade.

Minha arma não é como a de Hank, que explode crânios e os criva em paredes, ela é mais limpa na hora de fazer o serviço, e o faz muito bem.

Encaro as lápides, sozinho agora. Sangue escuro desliza e pinga delas, caindo na neve como chuva. Os dois nomes desaparecem por um tempo. ‘‘Marta’’ na maior e ‘‘John ’’ na menor, somem na sujeira, cada um com as datas possuindo dois anos de diferença de morte.  

Desviro o alienígena. Seus imensos olhos característicos são apenas uma lagoa de paz, sem pupilas para navegarem inertes. A boca fechada pelos lábios retos. Não possui nariz.

O pego nos braços e ando o caminho pelo a qual vim. Sendo remarcado pelo ferimento gotejante do ET. Os pinheiros apenas observam a caminhada silenciosa.

‘‘Pensei que não iria chegar nunca, Jax. ’’ Hank reclama enquanto me aproximo.

Uma fogueira imensa encontrava-se acesa. O fogo crepitava alto e sem ser atrapalhado pela neve que já parou de cair.

‘‘Só joga essa aberração aí logo, o outro tá querendo companhia. ’’ Hank ri da própria piada e aperta mais um pano contra o ombro ferido.

O corpo do homem morto é apenas uma sombra ondulante no fogo laranja. Arremesso o alienígena em direção as chamas, que assumem um tom esverdeado escuro instantaneamente.

Saio de perto do fogaréu.

Hank liga para á central informando a conclusão da missão e pedindo para que a equipe de limpeza venha. Quando eles chegarem, já vamos ter ido embora. Eles irão tirar as fotos do armário, tem haver com provas ou alguma coisa assim. Talvez eu pergunte se eles descobriram o que aconteceu aqui antes de Hank e eu chegarmos

A cor viva banha apenas nossos rostos dessa vez, sem testemunhas para apreciar sua beleza colorida. A fogueira é protegida do chão nevado por uma lona especial, caso você esteja se perguntando.

Pego meu cantil do casaco. Está vazio. Sem uísque amargo para essa noite.

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Contadores de Histórias
Enviado por Contadores de Histórias em 01/03/2015
Reeditado em 13/03/2015
Código do texto: T5154255
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