Filhos

          O telefone toca insistentemente às quatro da manhã. O delegado Teixeira dá um pulo da cama como que impulsionado por molas. Um chamado do trabalho para comparecer onde um corpo foi encontrado. Chegando ao local, um vale  que rodeava  a cidade, deparou-se com o corpo de uma mulher sem roupas, com a face virada pra baixo, os braços sob a face.  Ao se aproximar com alguns colegas para analisar o corpo, viram a mesma cena assustadora de sempre, um crânio sem face. O assassino havia arrancado o rosto da vítima. Não era o primeiro corpo encontrado na mesma condição naquele local. Um enigma. Feitos os procedimentos de praxe, o corpo foi encaminhado ao IML .Com esse já contavam três casos nas mesmas condições. Mulher jovem, entre vinte e cinco e trinta anos, entre 1,50 e 1,65 de altura. E sempre com o rosto arrancado do crânio. A perícia dizia que o procedimento era feito com a mulher ainda viva.

           O delegado Teixeira, um careca alto com um bigode ralo que é mais uma questão de honra do que um bigode, está na 40ª DP desde antes dos gêmeos nascerem, fato que ele não tem muitas lembranças.  Abelardo, o mais novo dos dois, é comedido, tímido. Tem obsessão pelo certo. É tão correto que se alguém lhe empresta um jornal, não relaxa se não devolver. Já Augusto está sempre pronto pra qualquer farra, não recusa nada. Os dois moram com o pai, mas Abelardo passa boa parte do seu tempo fora de casa, ora estudando, ora trabalhando. E tem as horas em que ninguém, nem mesmo ele, sabe onde está. A mente lhe foge. Quando volta a si, num lugar que só se encontra nessas condições, está confuso, cansado. De tanto se encontrar nesse mesmo lugar sem saber por que, já sabe o caminho de volta pra casa.

          Augusto é um boa vida, não dá a mínima pra nada. E, como o irmão, tem ausências de consciência, quando acorda num lugar que nem faz ideia de como chegou. Por já ter estado lá nas mesmas condições, volta pra casa. Teixeira e seus filhos nunca se encontram em casa. Jamais fazem as refeições juntos. Na pia há um prato pra lavar de vez em quando, Teixeira sabe que só Augusto é tão folgado. Mas, curioso, há dias em que não tem nenhum prato pra lavar...
 
            Teixeira está chegando em casa. Está preocupado com os momentos de ausência que tem acontecido com ele. Acorda sempre deitado em sua cama, de banho tomado, completamente desnorteado. E cansado como se tivesse corrido mil maratonas. Já teve esse problema no passado, procurou ajuda de psicólogos, psiquiatras, mas ninguém resolveu, achou melhor deixar esse assunto de lado. Mesmo porque foi bem na época que os gêmeos nasceram, a mãe sumiu deixando-o às voltas com duas crianças. A verdade é que tirou de letra, pensa orgulhoso, nem se lembra da infância dos garotos. Agora estão criados, 28 anos se passaram. Encontra o vizinho, seu Cândido, um velho bisbilhoteiro que conhece Teixeira há muitos anos.

          - Como vai seu Cândido?

          -Vai-se indo, vai-se indo.

          - o senhor viu se o Augusto esteve aqui?

          Seu Cândido balança a cabeça em sinal de negação, olha para Teixeira penalizado mais uma vez:

          - Acho que você precisa de umas férias...O que tem a dizer desse bandido que anda matando mulheres?

          - Vamos pegá-lo, seu Cândido, fique tranquilo. Teixeira detesta conversar sobre seu trabalho com terceiros.

           Seu Cândido pensa enquanto observa a rua: cada doido, viu?

           Entra na garagem, estaciona o carro, desce e se encaminha à porta. Procura a chave na mochila, maldição, nunca encontrava de primeira. Abre a porta, entra, joga a chave na mesinha de centro e a mochila no sofá. Vai direto à cozinha, e lá está o prato na pia.Augusto estivera em casa, seu Cândido nem viu. Abre a geladeira, pega um resto de mussarela e de presunto, faz um sanduiche e senta à mesa. O assassino sem rosto está dominando seus pensamentos. O nome fora dado ironicamente referindo-se ao fato de não ser conhecido e de tirar o rosto das vítimas. Dá uma sacudida na cabeça, levanta-se, segue para o banheiro onde pretende tomar um banho. Escuridão.
 
            Era noite. Ela vinha toda faceira em seu vestido florido, sapatos de toctoctoc. ‘Boa noite‘’Ela parou, os olhos arregalados de medo, arrepios intensos por todo o corpo. Bem que lhe avisaram pra não passar por ali. Continuou andando, agora quase correndo pra chegar na rua. Ele correu. Alcançou-a. ‘’Vem comigo '' Pegou-a, jogou no ombro e saiu andando apressadamente. Parece que ela estava gritando, mas estava longe demais, não podia ser a mesma que tinha em suas mãos. Parou no vale, tirou a mochila das costas. Pegou o pano embebido em éter, chegou ao seu nariz obrigando-a a cheirar, colocou uma pedra sob sua cabeça, “está confortável?, Ah, já dormiu...’’ . Abriu a bolsa com as ferramentas e com o bisturi em mãos,’’ vamos tirar essa maquiagem, não é coisa de mulher direita, né?’’.  Cortou a pele que envolve o rosto com todo cuidado, contornando com traços precisos e delicados bem rente ao cabelo, com a pinça mayo puxou fio por fio dos cílios. ‘’fica quieta, não se mexa tanto, vamos tirar essa sujeira do rosto, você é tão linda, não sei pra que tudo isso’’. Foi bem detalhista, passou o bisturi bem pertinho da orelha.  Sangue brotando a cada investida da lâmina, ‘’quanto suor, nem está tanto calor assim... Você fica bem melhor sem maquiagem... Você gosta de dormir de bruços? Deixa eu te ajeitar’’ Colocou-a voltada para baixo, os braços cruzados sob a face. Escuridão. Inconsciência.                                                                          
 
             Abelardo está de novo naquele lugar. Como chegara até ali? Porque está sujo de sangue? Será... Não!  Não pode ser!  Levou as mãos à cabeça, desesperado... Ele é o assassino sem rosto!  

             Teixeira está às voltas com outro assassinato. O quarto já e nenhuma pista do assassino.

              Abelardo sai correndo daquela casa. A simples ideia de que ele possa ser o assassino sem rosto deixou-o desesperado. Vai á delegacia procurar o pai. Nunca gostou de depender dele, mas o momento exigia uma solução. Todo ensanguentado como está, atrai a atenção de todos, mas isso é o que menos importa. Quando chega à delegacia , na portaria, um policial que estava saindo pergunta:                                                                                                                                              
              - O que houve, senhor? Onde se machucou assim? O senhor está bem?

              Abelardo diz em desespero:

              -O delegado Teixeira está? É muito importante!

              O policial olha pra ele entre assustado e confuso e diz:

              -Senhor...

              Nem deixa o policial terminar a frase, sai voando corredor afora, gritando:

              -Pai! Pai! Eu sou o assassino sem rosto, pai!

              Todos olham abismados pra ele, ninguém entende a nada, além de espantados por ver tanto sangue espalhado em uma pessoa. Quando chega à sala do delegado, vê que está vazia.  O que será de mim? O que será de mim? Repete alucinadamente. De repente, sem menos esperar, Abelardo cai pra trás, escuridão.

              Carlos, um detetive da 40ª, chega à porta e quase perde os sentidos com o que vê. Só consegue balbuciar:

               - Teixeira...
 
                 O delegado olha pra si mesmo, olha para Carlos como que perguntando: o que está acontecendo aqui? Acorda deitado no chão de sua sala, todo sujo de sangue...

                 - Teixeira-inicia Carlos- eu não sei como te dizer isso, mas preciso falar mesmo assim...

                 -Diga qualquer coisa que explique  o fato de ter tanto sangue espalhado pela minha roupa!

                 -É que...

                 -Desembucha, homem!

                 -Você confessou ser o assassino sem rosto!

                 -Tá louco, Carlão? Eu pedi pra dizer qualquer coisa que faça sentido, não uma maluquice dessa!

                 -Todos são testemunhas, Teixeira. Você entrou aqui gritando ‘’Pai! Pai!’’ e confessando os crimes.

                 Só então Teixeira percebe os rostos confusos, acusadores, com as mais diferentes reações olhando pra ele. As ausências, pensa ele, será... Escuridão...
 
 
                 Augusto abre os olhos, confuso. O que estava fazendo ali, na delegacia onde seu pai trabalha? Porque está deitado? E o mais importante, importantíssimo: porque está todo sujo de sangue?

                 -Teixeira?-diz Carlos.

                Augusto olha para os lados, se encontrar o pai, talvez ele tenha uma explicação. Mas não o vê. Olha para Carlos indagativamente. Onde está seu pai, que só Carlos consegue enxergar?

                Carlos se aproxima e diz:

                -A perícia vai colher esse sangue em seu corpo para ver se é o mesmo da última vítima. Por enquanto você está detido...

                 Augusto arregala os olhos:

                 -Eu? Por que?

                 - Você confessou, Teixeira, valha-me Deus!

  Escuridão.

                  Teixeira está em um quarto. Tudo é branco, não há janela. Só uma porta, branca também. Por ela entra uma enfermeira, com um copo de suco e um sanduiche de mussarela com presunto em uma bandeja:

                   -Bom dia, como vai, delegado?

                   -Estou bem. Meus filhos estiveram aqui?

                    Ela, já acostumada com o quadro clínico do paciente, responde:

                   -Não, andam muito ocupados, mas virão, ok?

     Ao sair fecha a porta e pelo corredor vai falando consigo mesma:

                  - Que triste, meu Deus! Quando o coitado vai se convencer de que nunca teve filhos e aceitar que é o assassino sem rosto?
 
TEMAS: * Em Família
* Prisão / Prisioneiro / Cárcere
"Total de 1507 palavras"

 

Caro participante, deixe seu comentário nesse texto já com a nota destinada. Lembrando que o comentário só será visualizado ao final do desafio, no ato da divulgação do resultado final.

Para saber como participar do desafio clique aqui

Clique Aqui para acessar o 1° conto do DTRL30 "Diário DE Um SEDUTOR"

Clique Aqui para acessar o 3° conto do DTRL30 "E os Mares Sangraram"