Deviam ter fechado a porta

Aluu! Inuugujaq meus caros 23 fieis leitores e demais 36 que de quando em vez aparecem aqui pelo meu obituário literário a fim ler crônicas saudosas. Ajunngilla?

Num certo início de manhã, quando este Bacamarte era bem pequeno, flagrou seus pais transando. Tive um pesadelo, levantei cedo, chorando e, filinho da mamãe que até hoje sou, fui direto para o quarto dos pais, atrás dela. Como a porta estava aberta, entrei e pá, levei um baita susto. Não sabia o que estava acontecendo, mas ver minha mãe nua sentada em cima do meu pai, arfando, assutou o baby Baca. Dei meia volta dali e saí tão rápido como entrei. Eles nunca me disseram nada, mas acho que perceberam, pois aquela porta, que devia estar fechada naquele dia, passou a ficar trancada à noite desde então.

Claro que eu não saquei nada do que era aquilo, ainda estava na fase Papai Noel, Coelinho da Páscoa e Bicho Papão. Nem sabia que sexo existia, só sabia da Cegonha. Por que estou contando isso para tuzes? PORQUE MINHA MAE MORREU. Ela estava doente, já havia escrito sobre isso aqui, não entrarei novamente em detalhes sobre isso, é muito difícil pra mim. Meu pai morreu ano passado, após longa convalescença, e, agora, a mãe. Esta vida é brutal, não há perdão ou condescendência, sem arreglo pra ninguém: o que tu deve passar, vais passar e pronto, sem dó ou piedade. E os Bacamarte tiveram de passar por isso, principalmente os que morreram e, também, os que choraram e continuam vivos.

Mas estou revelando isso porque, no enterro da minha mãe, na hora que estavam colocando o caixão na sepultura, lembrei desse fato lá do século passado de minha infância. É que colocaram o caixão da mãe em cima do do pai. Aí eu lembrei da rápida imagem da minha mãe, nua, arfando sobre meu pai. Eu não precisava ter lembrado disso e tampouco estaria escrevendo sobre se, naquela manhã, aquela porta estivesse fechada. O tesão verpertino de meus pais coincidiu com o pesadelo do pequeno Bacamarte.

Tá, mas eu pensei. E por que pensei? Por que aqueles dois corpos, ali, depositados um em cima do outro, já amaram e transaram e foi por isso que eu possuo esse corpo físico e aqui estou. Sexo é uma coisa muito importante, é prazer e, principalmente, fonte de vida - reprodução. O encontro genital de meus pais, mais que a busca pelo prazer e gozo, era a concretude do encontro de duas almas afins. Dele surgiram este Bacamarte e seus irmãos e irmãs, pelo ventre fecundado da senhora Bacamarte.

O corpo de minha mãe, o grande amor de minha vida, sendo sepultado e eu, no meu sofrimento, pensando nisso. Estranhei seu corpo assim como estranhei o do meu pai, meses atrás. Cascas sem a centelha de vida que via em seus olhos, principalmente nos belos olhos verdes de minha mãe. Eles não estavam mais naqueles corpos velados e sepultos. A centelha de vida se fora. Agora, sem os corpos, amam em plenitude, almas libertas no plano espiritual.

A gente chora a perda ou por remorso ou por egoísmo, pois choramos pela perda que tivemos. Nem meu pai nem minha mãe queriam morrer, então nenhum deles "descansou". Minha mãe não morreu por não poder viver sem meu pai, morreu pela doença. Então sei por experiência que frases feitas como "Não conseguiu viver sem o outro" ou "Descansou" são bobagem. Ninguém quer morrer. Como disse a escritora Lia Luft, também falecida por esses dias, "A morte é uma merda".

E a gente passa por forças contrárias nesses momentos extremos. Via a mãe sofrendo e pensava: "Morre de uma vez, mãe". Em seguida, o contrário: "Não morre, mãe, não morre". "Eu te amo" era a única certeza. Dois desejos antagônicos motivados pelo mesmo amor, nada comparáveis ao sofrimento dela. O fato é que sua breve convalescença a protegeu de maiores e inúteis sofrimentos. Nunca esqueço de uma enfermeira ter me falado, quando da ocasião de um grande amigo passar por situação análoga: "Se ele tiver sorte, tem um troço antes e não vai até o fim dessa doença, que leva a um sofrimento atroz". Meu amigo teve azar, era um cara muito forte e resistente, lembro muito bem do inominável pelo qual ele passou antes de dar o último suspiro, profundo, pois estava ao seu lado, segurava sua mão.

Minha mãe, então, teve sorte? Acho sinceramente que sim, face ao inevitável da situação, mas o fato é que ninguém quer morrer e ninguém quer perder. Agora a porta do quarto de meus pais está trancada para sempre nesse plano físico, onde eles, hoje, inexistem. Nunca mais verei aqueles olhos verdes maravilhosos e a centelha de vida que havia neles. Não serei egoísta a ponto de chorar demais por isso. Remoros, graças à Deus, não tenho.

Qujanaq por terem dado uma passadinha por aqui hoje. Takuss"!


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O velório de Tutankamon e os ossos do tio Everaldo
A vida é brutal
Se eu contar tuzes não vão acreditar
No final todo mundo morre
Tá lá na noite preta
Por mais um dia, um coro de passarinhos
Doença não é um passarinho cor de laranja
Crônica da morte certa
O velho Bacamarte fugiu do hospital



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Era isso pessoal. Toda sexta, às 17h19min, estarei aqui no RL com uma nova crônica. Abraço a todos.



MAIS TEXTOS em:
http://charkycity.blogspot.com

(Não sei porque eu ainda coloco o link desse blog, eu perdi a senha e não atualizo ele há séculos. Até eu descobrir o motivo pelo qual continuo divulgando esse link, vou mantê-lo. Na dúvida, não ultrapasse, né. Acho que continuarei seguindo o conselho que a Giustina deu num comentário em 23 de outubro de 2013: "23/10/2013 00:18 - Giustina
Oi, Antônio! Como hoje não é mais aquele hoje, acredito que não estejas mais chateado... rsrrs! Quanto ao teu blog, sugiro que continues a divulgá-lo, afinal, numa dessas tu lembras tua senha... Grande abraço".)

CARTA ABERTA aos meus caros 23 fieis leitores: 
https://www.recantodasletras.com.br/cartas/3403862

GLOSSÁRIO KALAALLISUT:
Aluu - Olá.
Iterluarit kumoorn - bom dia.
Inuugujaq - Boa tarde.
Ajuungila - Como estão?
Qujanaq - Obrigado.
Takuss' - Até mais.

Antônio Rollim Fernando de Braga Bacamarte

Antônio Bacamarte
Enviado por Antônio Bacamarte em 05/02/2022
Reeditado em 05/02/2022
Código do texto: T7445132
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